É noite cerrada e seguimos por uma velha estrada nacional entre duas aldeias, à boleia de Miguel Dantas da Gama, que encontrou uma nova maneira de espreitar a vida abrigada pelo escuro. Que surpresas nos esperam?
27.setembro.2022
Chamávamos-lhes faroladas. Noite dentro, serra acima, um agarrado ao volante de um todo-o-terreno, outro a um farol, uma potente gambiarra ligada à bateria do carro ou a uma alimentação dedicada para o efeito, partíamos em busca do que de dia praticamente não se via.
O homem da luz dirigia a operação. Apontava o foco para as encostas a partir de ambas as bermas da estrada florestal. Era o que enfrentava o vento, por vezes gelado, o que primeiro via o reflexo dos olhos dos animais que enfrentavam a luz. Na maior parte das vezes nem era preciso recorrer aos binóculos para identificar mais um animal bravio que tanto buscávamos.
Foi assim que há quase quarenta anos vi os primeiros corços, numa altura em que a espécie não beneficiava da distribuição mais alargada que hoje se confere. Foi também por esta via que pude registar o primeiro dos quatro avistamentos que tenho de gato-montês (dois na Peneda-Gerês, outros tantos na cordilheira cantábrica).
Era um método rudimentar, que hoje não faz sentido, nem se recomenda. É agressivo, intrusivo, regra geral interdito e até algo arriscado, já que este procedimento pode ser facilmente confundido com práticas de caça furtiva e outras ações condenáveis. Atualmente há processos eficazes e não agressivos para confirmar ocorrências, para realizar censos e outros seguimentos de fauna selvagem.
Há dias regressei à aldeia, a Trás-os-Montes. Terminado que está o longo projeto editorial iniciado há cerca de oito anos e enquanto não arranca a tournée de apresentações que se vai iniciar em meados de outubro para promoção do novo livro, volto-me para o campo. Um campo a sair de um verão demolidor. Por aqui, as nascentes deixaram de brotar. As águas quase não correm nos rios, os leitos dos ribeiros apresentam-se secos. No que toca a fruta foi uma razia e na folhagem das árvores confirma-se o extremo sofrimento por que passaram.
Mas a vida continua, há sinais de bichos resistentes que nos atraem para o monte. E aqui se explica porque recordo as faroladas. Faz ainda muito calor, a atividade diurna é escassa. Uma bicicleta na arrecadação e um potente frontal na mochila dão-me então nova ideia.
As frontaladas – inventei o nome para esta crónica – são a versão moderna das faroladas da juventude. Nestas noites transmontanas, junto estas duas ferramentas e percorro, nos dois sentidos, os cerca de meia dúzia de quilómetros que separam a aldeia onde estou da vizinha mais próxima. A velha estrada nacional deixou de ter trânsito noturno, logo que a via rápida ficou pronta. De dia quase só ali circulam tratores.
As noites têm estado fantásticas, o silêncio seria total se não fosse o rodar da cremalheira. Em menos de uma semana, conto já quatro raposas, três texugos – um deles veio até junto do velocípede, só se afastando quando sentiu ou cheirou quem o conduzia – uma fuinha e uma lebre, atestando a enorme utilização que os animais selvagens dão às vias abertas pelo homem. Infelizmente tal hábito é-lhes por vezes fatal, mas mesmo aí há quem se aproveite destas baixas nas rodovias.
De dia e de noite, postes de suporte de linhas elétricas e de sinalética são postos de vigia de águias, mochos e corujas que espreitam uma oportunidade de se alimentarem sem o esforço da caça. Estes poisos são também objeto de atenção nesta nova abordagem que junta o útil ao agradável. Umas boas pedaladas são recompensadas por encontros que se dão facilmente logo ao virar da primeira curva, na saída da aldeia.