“Podemos terminar esta história antes que ela comece”, apela Sian Owen, directora da Deep Sea Conservation Coalition, que junta mais de 100 ONGs, organizações de pescas e institutos preocupados com a protecção dos ecossistemas vulneráveis do mar profundo. A Wilder falou com esta activista canadiana em Lisboa, à margem da Conferência dos Oceanos da ONU, numa entrevista em que Sian Owen avisa que as operações de extracção mineira no leito do oceano podem começar já em 2023 e desvenda os dilemas ligados a esta exploração.
Wilder: O que sabemos hoje sobre a vida no oceano profundo?
Sian Owen: Estamos a falar de todo o oceano abaixo dos 200 metros de profundidade, que representa 95% de todo o espaço onde a vida pode existir na Terra.
Hoje, sabemos mais do que há 10 ou 15 anos. Tem havido um aumento na investigação e foram publicados muitos artigos científicos nos últimos anos. E de cada vez que uma expedição de pesquisa vai lá abaixo, traz pelo menos uma nova espécie. Sabemos que a vida no fundo do oceano é muito rica e biodiversa.
W: Que espécies é que podemos encontrar?
Sian Owen: Há corais e esponjas que podem ter 5.000, 6.000, 7.000 anos de idade; o peixe-relógio (Hoplosthetus atlanticas), [classificado como Vulnerável à extinção], que pode viver até aos 150 anos; existem polvos, como o polvo-dumbo (Grimpoteuthis spp.), que usam as esponjas para colocar os seus ovos, nos nódulos de manganésio [também chamados de nódulos polimetálicos] que algumas das companhias mineiras tencionam explorar.
Não há nada de muito sólido no fundo do oceano. Por isso, quando há uma esponja ou um coral, os outros animais dependem dessas estruturas. É por isso que cada um dos nódulos de manganésio é um ecossistema, porque cada uma das criaturas o utiliza para formar o seu próprio ecossistema.
W: Então não é tudo negro e sem vida no fundo do mar?
Sian Owen: Não, nada disso. Como já referi, de cada vez que há uma expedição de pesquisa descobre-se pelo menos uma espécie nova. O que sabemos é que há imensas coisas que não sabemos: de acordo com os cientistas do mar profundo, precisamos de pelo menos três ou quatro décadas para continuar a mapear e perceber a diversidade que está lá em baixo e também os serviços que o oceano profundo nos presta.
Sabemos por exemplo que o oceano profundo é importante para o sequestro de carbono e que existe uma espécie de ciclo biológico do carbono, que envolve os animais marinhos mesopelágicos [que vivem em suspensão na coluna de água, entre os 200 e os 1000 metros de profundidade].
Todos os dias há uma vasta migração dessas criaturas que sobem à superfície e depois voltam para baixo. Os animais alimentam-se e absorvem carbono no topo do oceano e este é depois trazido para baixo e fica armazenado no fundo do mar, quando morrem e ali ficam depositados.
Sabemos também que o oceano fornece 50% do oxigénio do planeta. Existem as florestas que são o pulmão verde do planeta, mas o oceano é o pulmão azul.
W: Mas porque é que as companhias mineiras estão tão interessadas em explorar esse território?
Sian Owen: Na verdade, a maior parte da indústria mineira que trabalha na superfície terrestre não está envolvida, está a assistir ao que se passa. Temos é três ou quatro empresas especialmente interessadas, que acredito que tenham motivações diversas.
Há uma ‘startup’, uma empresa que nunca trabalhou na extracção mineira, que é a The Metals Company (TMC), com capitais americanos e canadianos. Outra é uma subsidiária de uma empresa grande de dragagens belga, a GSR – Global Sea Mineral Resources. E a terceira companhia é britânica, mas subsidiária da americana Lockheed Martin, que entre outras actividades é fabricante de armas.
Também há companhias ligadas a Estados, como a China, Rússia e Japão, mas as principais são as primeiras.
W: E o que é que descobriram no mar profundo que as motiva?
Sian Owen: Os principais minérios de que toda a gente fala são o chumbo, o cobalto, o manganésio e o níquel. São metais importantes para as energias renováveis, para o armazenamento de energia e para as baterias. Estamos a falar de turbinas eólicas, painéis solares, carros eléctricos, telemóveis e tablets… Estas companhias afirmam que a única maneira de descarbonizar o planeta é retirar estes minerais do leito do mar profundo.
W: E qual é a vossa posição? Existe alguma alternativa?
Sian Owen: Antes de tudo, entendemos que não podemos minerar a nossa saída da crise climática. Existe uma crise da biodiversidade e uma crise climática e caminhos alternativos para descarbonizar.
Em primeiro lugar, há minérios em terra que podem ser melhor explorados. O argumento dessas companhias é que a procura vai crescer tanto que não a conseguiremos sustentar apenas com as minas terrestres, mas sabemos que existem inúmeras fontes terrestres desses minérios que ainda não foram exploradas. Não estamos a dizer para haver uma corrida, mas sim que há uma forma responsável de continuar a explorar esses recursos em terra.
Em segundo, os desenvolvimentos tecnológicos são tão rápidos que podemos não necessitar de cobalto ou chumbo no futuro. As necessidades vão mudar imenso ao longo do tempo, à medida que a tecnologia de hidrogénio se desenvolve e que surgem novas formas de explorar o lítio, com a extracção de água do oceano por exemplo.
Em terceiro lugar temos a economia circular, que aposta no redesenho, reutilização e reciclagem e na diminuição da procura. E há uma grande pressão política sobre os governos que aqui estão [na Conferência dos Ocenos] para aumentarem os incentivos de investimento na economia circular. Hoje em dia estamos a reutilizar e a reciclar apenas uma percentagem minúscula dos metais que já estão a ser usados.
E por isso, acredito que alguma da pressa em começar a explorar o fundo do mar é especulativa – especialmente a TMC, essas pessoas nunca foram mineiros.
W: Mas já se sabe quais vão ser os impactos dessa exploração?
Sian Owen: A perda de biodiversidade vai ser irreversível. Eles gostam de falar em “colher” os nódulos do leito do oceano. O que a extracção mineira na verdade significa é a remoção de 30 centímetros do topo do leito oceânico e essa parte não vai retornar durante milhares de anos. Devido ao longo tempo que demoram as coisas no mar profundo, não podemos falar de restauro de um ecossistema da mesma forma que numa zona costeira.
Ninguém pode aceitar a destruição (‘bulldozing’) de milhares de quilómetros quadrados: cada acordo [já firmado] para a prospecção dos nódulos de manganésio, por exemplo, prevê [a intervenção em] oito ou nove mil quilómetros quadrados. Uma vez que as autoridades internacionais comecem a aprovar a extracção mineira desses nódulos, não poderão dizer que não a outros pretendentes. Não há forma de dizerem que sim a um país ou promotor e que não a outro promotor diferente. Neste momento existem 31 licenças de prospecção mineira que foram aprovadas.
W: E qual é a parte do oceano que mais atrai as companhias?
Os nódulos de manganésio são considerados a fonte mais rica de metais. Estão localizados na Zona de Clarion-Clipperton, que fica situada entre o México e o Hawai, no Pacífico Sul. Dos 31 contratos de prospecção concedidos pela ISA – International Seabed Authority (em português, Autoridade Internacional para o Leito Marinho), 17 ficam nessa zona, e dirigem-se aos nódulos de manganésio. Estes têm, além de manganésio, também chumbo, cobalto e níquel. É com essa área do oceano que as pessoas estão mais excitadas.
W: Em Junho do ano passado, o governo de Nauru, uma pequena nação da Oceania, fez uma parceria com a TMC e deu dois anos à ISA para regular a exploração mineira do mar profundo. Quais são as consequências?
Sian Owen: Na Convenção da ONU para a Lei do Mar, há uma cláusula que é a chamada regra de gatilho [em inglês, ’trigger rule’] dos dois anos. Qualquer um dos 167 Estados-membros da ISA podia accionar esta regra a qualquer altura, durante estes anos de negociação para a criação de um quadro regulatório. Havia sempre a possibilidade de um Estado acelerar o processo para avançar com a mineração. E isso aconteceu com Nauru, que accionou a regra dos dois anos no fim de Junho do ano passado, e assim impôs um prazo ao mundo inteiro. E agora ou concluímos as negociações para a regulação ou as companhias poderão avançar com um pedido de licença para extracção mineira, mesmo que haja apenas um quadro regulatório temporário.
W: Nauru e a TMC podem ser os primeiros a começar a extracção mineira na zona de Clarion-Clipperton?
Sian Owen: Existem imensas questões em aberto sobre as opções que temos, mas uma possibilidade é que a 1 de Julho de 2023 a TMC se candidate a converter a actual licença de prospecção numa licença de extracção mineira, na zona de Clarion-Clipperton.
W: Temos estado a falar sobre o mar profundo, mas isso parece tão longe da realidade das pessoas comuns. Porque é que as pessoas hão-de ficar preocupadas?
Sian Owen: Uma das coisas que aprendemos nos últimos cinco a 10 anos é que algo que acontece numa parte do planeta pode afectar-nos a todos.
Primeiro, tudo no mundo está conectado. Em segundo, sabemos que o oceano é o coração regulador do nosso planeta: fornece-nos segurança alimentar, segurança de subsistência, oferece-nos o sequestro de carbono. Já colocámos várias camadas de stress no oceano, com o aquecimento das águas e a acidificação, a sobrepesca, e agora queremos também extrair minérios?
Se destruirmos o leito oceânico nem sequer sabemos o que estamos a destruir; pode ser uma fonte de recursos marinhos genéticos, podemos estar a destruir algo valioso que nem sequer conhecemos. O que sabemos é que se retirarmos todo este leito marinho teremos vários impactos, por exemplo com a produção de plumas de sedimentos. E também barulhos e luzes em zonas da Terra onde nunca tinham acontecido.
W: Isso pode afectar os animais marinhos?
Sian Owen: Sem dúvida. Os animais marinhos usam o som para comunicar e detectar as presas. Tudo isso vai ter um impacto que desconhecemos.
O que também sabemos é que os contratos têm um prazo de 30 anos e que a actividade mineira vai ser de 24 horas sobre 24 horas, sete dias por semana. Não vai haver paragens para este barulho e luzes no fundo do oceano. Estamos a falar de uma actividade mineira intensa numa altura em que devíamos estar a restaurar a saúde do oceano e não a levá-la noutra direcção.
A Lei dos Mares está “desactualizada”
W: Receia que assim que alguém inicie a extracção, todos os outros vão atrás?
Sian Owen: Existe certamente esse risco. Porque se começar a extracção estão a abrir essa porta. Não quer dizer que aconteça tudo ao mesmo tempo, mas isso será possível, e o problema é que não haverá maneira de regular essa actividade.
O apelo global para uma moratória que o governo de Palau lançou esta segunda-feira, à margem da Conferência dos Oceanos, pede várias condições [para o início das operações mineiras]: primeiro, o aprofundamento da investigação científica sobre este assunto e que seja reformulada a forma como funciona a ISA, que só tem estado focada na actividade mineira e não na proteção da biodiversidade do mar profundo, outro dos seus mandatos.
O problema é que a Lei dos Mares foi negociada há 40 anos. É muito importante mas está desactualizada no que respeita à forma como gerimos os oceanos. E por isso precisa de ser actualizada de acordo com o que conhecemos hoje.
Em terceiro lugar, pede-se que seja concedida uma licença da parte da sociedade, porque o leito do alto mar, fora das áreas de jurisdição nacionais, é um património comum da humanidade. É um recurso para todos nós e também para as gerações futuras. As decisões que estamos a tomar, sobre causar prejuízos irreversíveis com a exploração destes minérios, será apenas para benefício de uns poucos…
E por último, a moratória apela a que haja investimento adequado em alternativas, como a economia circular.
W: Mas quanto aos pequenos países como Nauru, que precisam de recursos financeiros, como é que resolvemos essa necessidade?
Sian Owen: Essa é uma parte da discussão que precisa de ser feita e faz parte do apelo desta moratória: montar uma agenda científica do oceano que responda a questões sobre a biologia e os serviços de ecossistema do oceano, mas que por outro lado procure alternativas sócio-económicas que beneficiem países como Nauru, para que não dependam da extracção de recursos marinhos. Existem alternativas possíveis como os recursos marinhos genéticos, as energias renováveis. É uma conversa que precisamos de ter, sobre como pode o mundo unir-se e apoiar estes países.
W: Esperam que seja aprovada alguma decisão nesta conferência de Lisboa?
Esta conferência não se dedica formalmente à exploração mineira do mar profundo, mas houve desenvolvimentos nessa área com o apelo do governo de Palau à moratória de que temos estado a falar, a que se juntaram Samoa e as ilhas Fiji. E sabemos que há outros países preocupados.
A nível regional também há um movimento interessante, que inclui o Território do Norte australiano e os estados da Califórnia e de Washington, nos Estados Unidos, que baniram a exploração de minérios nas suas águas. Em Espanha, a Galiza e as Canárias também adoptaram uma moratória quanto às águas regionais. E na Nova Zelândia, já houve três tentativas de companhias de obterem licenças para extrair minérios do mar profundo, que até agora têm sido sempre rejeitadas pelo tribunal.
Esperamos iniciativas e resultados semelhantes em próximos encontros, como a Convenção para a Diversidade Biológica em Dezembro deste ano. São diferentes fóruns em que os governos se comprometem com a saúde do planeta e o restauro da biodiversidade.
W: Muitos países não adoptaram ainda uma decisão, certo?
A não ser que seja um governo que esteja a pensar em extrair minérios das suas águas, como acontece aliás com Portugal, ou que seja um Estado patrocinador da ISA, muitos governos não tiveram ainda tempo para pensar no assunto, até porque os últimos dois anos foram difíceis. Mas agora a exploração mineira do mar profundo precisa de fazer parte das agendas, para que os países se informem sobre o assunto e definam as suas posições.
E quanto mais isto é debatido, mais países e entidades defendem uma moratória. Temos uma tomada de posição científica, subscrita por mais de 600 cientistas e especialistas em políticas públicas, que pedem uma moratória; uma outra tomada de posição do mundo empresarial no mesmo sentido subscrita por cada vez mais empresas como a BMW, a Samsung e a Microsoft; temos instituições financeiras que estão a avisar que não irão financiar estas actividades; grupos indígenas e regiões que rejeitam esse tipo de exploração nas suas águas.
W: E Portugal?
Sian Owen: O governo recém-empossado tem sido mais cauteloso do que o anterior, no qual o ministro do Mar [Ricardo Serrão] Santos tinha declarado que a exploração do fundo marinho deveria ser suspensa. Embora falasse como ministro e não pelo Governo, era uma indicação de que Portugal se inclinaria para apoiar uma moratória. Mas agora com a mudança governativa, o novo Governo ainda está a debater o assunto…
W: Embora se tenha mantido o mesmo primeiro-ministro… E quanto aos cidadãos em geral, o que podem fazer quanto a esta situação?
Sian Owen: Em primeiro lugar, podemos aprender mais sobre este assunto e divulgar o tema junto das pessoas que conhecemos, porque o mar profundo é ainda tão desconhecido…
E uma vez que a exploração mineira ainda não está a acontecer, isso é muito excitante. Sempre que avançamos com acções de conservação, estamos a correr atrás do prejuízo, mas desta vez temos a oportunidade de aprender com os erros do do século XX e decidirmos não os repetir. Podemos parar esta história antes que comece.
Segundo, devemos insistir e chamar a atenção dos decisores políticos, seja ao nível local, regional ou nacional, e explicar que o nosso voto depende de que eles tomem a decisão certa nesta matéria.
Em terceiro lugar, podemos actuar como consumidores e divulgar que estamos a comprar por exemplo equipamentos da Samsung ou da Microsoft porque estão contra a exploração do solo marinho. E devemos também tentar não substituir os nossos equipamentos todos os anos, utilizá-los com a consciência dos minérios que são usados no seu fabrico. Podemos também recorrer a empresas que recolhem equipamentos usados, na venda de novos, e reciclam esses metais.