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Que espécie é esta: Buraqueira-de-duas-fieiras

07.04.2020

O leitor Jorge Caldas Santos fotografou esta aranha a 24 de Março em Grijó, Vila Nova de Gaia, e quis saber a que espécie pertence. Sérgio Henriques responde.

 

“Encontrámos esta aranha a uns 10cm debaixo da terra, no jardim com bolbos de flores”, contou o leitor à Wilder. “Ela tem cerca de 2-3cm, não saltou nem foi agressiva. Libertámos a aranha num campo. Não conseguimos identificar, será a aranha de patas vermelhas?”

 

 

 

Trata-se da buraqueira-de-duas-fieiras (Iberesia machadoi).

Espécie identificada e texto por: Sérgio Henriques, líder do grupo de especialistas em aranhas e escorpiões da UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza) e especialista da Sociedade Zoológica de Londres.

A aranha da fotografia é uma fêmea de Iberesia machadoi, uma buraqueira da familia Nemesiidae que, como se pode ver pela foto, foi escavada da sua toca.

Sao animais super interessantes, endémicos da Peninsula Ibérica e que foram apenas descritos para a ciencia em 2006, em parte com material que eu recolhi.

As Iberesia machadoi são animais extraordinários e super interessantes. São endémicas da Península Ibérica e o seu nome foi dedicado a um dos maiores aracnológos nacionais, o professor António de Barros Machado.

Esta é umas das maiores aranhas da nossa fauna. Mas raramente nos apercebemos que existe mesmo aos nossos pés porque constrói ninhos bem fundos que cobre com uma tampa perfeita do habitat que as rodeia (se o solo tiver lichens amarelos, ou musgo verde, a tampa sera exactamente desse material).

A tampa e a área em redor estão ligadas por seda ao fundo da toca, e assim este pequeno predador sabe não só o tamanho do que está lá fora (pela força da vibração), mas também em que direcção da toca se encontra.

A tampa é bem grossa, tipo rolha, e tem vários buracos no seu interior, nos quais a aranha encaixa as garras e a boca. Se algum animal tentar abrir a porta ela consegue manter a porta fechada com toda a sua força.

Um pouco por todo o país várias pessoas tentam apanhar estes animais (normalmente crianças), abrindo as suas tocas e tentando tirá-las para o exterior com um palha que usam para antagonizar a pobre aranha, a que chamam de aranhola ou aranhão.

O comportamento natural do animal é morder o que a ataca e não largar (para que o atacante aprenda a lição), mas neste caso, a sua defesa de morder e prender o atacante permite que se use a palha como uma “cana de pesca”. Uma vez cá fora, o animal fica indefeso fora do seu meio. E uma vez que não utiliza visão para caçar, nem precisa dela no interior da sua toca, vê muito mal e não sabe de onde vem o seu atacante. Então abre a boca tanto quanto pode e levanta as patas em sinal de aviso. É tudo o que pode fazer.

As crianças, por vezes, tentam colocar duas aranhas próximas uma da outra para que estas se ataquem. Normalmente não acaba bem para nenhum dos animais. Mas apesar de prejudicial para a aranha, esta é uma pratica antiga, tradicional, que de alguma forma indicava o nível de conhecimento do mundo natural e ligação à terra, já que as crianças não só conheciam a espécie, como sabiam onde e como apanhar estes animais.

Este tipo de à vontade com a nossa aracnofauna foi o que levou ao uso de termos como “andar às aranhas”, “ficar atarantado” ou o meu preferido “em palpos de aranha”, que significa estar em apuros, porque os palpos são a estructura mais próxima das queliceras (boca) de uma aranha. Mas acho que será difícil alguém hoje saber que as aranhas têm palpos. No entanto, no nosso passado recente, era conhecimento tão comum que originou uma expressão popular.

Mas os humanos não são o adversário natural das Iberesias. O seu arqui-inimigo são as vespas parasíticas que desenvolveram estratégias notáveis para derrotar as defesas destas aranhas, numa batalha que dura há milénios. Mas isso é uma historia para outro dia.

Quando chega o Inverno, as Iberesia cobrem a sua toca por dentro com seda isolante (para as abrigar da chuva) e abrigam-se no fundo do ninho. No pico do Verão fazem algo ainda mais notável, estivam. Esta é uma forma de hibernação mas para evitar o calor em vez do frio. De forma simplificada, estas aranhas constroem uma rolha longa de barro logo abaixo da tampa, que as sela e protege do calor e de possíveis predadores.

Este mecanismo é tão eficaz que as protege do fogo (característico da nossa região) e que se for rápido e de baixa intensidade pode eliminar os pequenos animais da superfície, mas não afecta a Iberesia. Talvez a rolha seja, na verdade, parte de uma estratégia anti-fogo, mas nunca foi testado. Talvez o barro e a maneira como é feito contenha lições de como proteger as nossas próprias casas do fogo. Mas também nunca foi estudado.

Estes são animais bem inteligentes, com muito para nos ensinar. As fêmeas poderam viver várias décadas e não seria surpreendente se vivessem 30 ou 40 anos. A fêmea na foto parece adulta e, embora possa ter 5 anos, facilmente poderá ter 10 ou 15 anos de idade.

Os machos têm vidas mais curtas, mas igualmente espectaculares. Quando um macho se torna adulto fica na sua toca até que receba os sinais ambientais exactos que indicam que é chegada a altura de buscar parceira (uma mistura de chuva, calor e talvez luar, a verdade é que não sabemos os que os faz sair, mas saem todos quase ao mesmo tempo).

Depois de encontrar uma toca de fêmea, o macho usa a tampa e o solo à sua volta como um tambor, para lhe tocar a sua “balada romântica”. Se a música agradar à fêmea esta sai bem devagar abrindo a porta de casa ao pretendente. Mas nem este entra no seu espaço, nem ela sai; arranjam um acordo que é mutuamente seguro para ambos e acasalam sob a porta.

O macho tem um esporão nas patas da frente que encaixam perfeitamente na boca (queliceras) da fêmea. Assim ele consegue ganhar o apoio que precisa para a levantar sobre a sua cabeça, enquanto garante que esta não o consegue morder. Ele levanta a fêmea para poder chegar à sua abertura genital que fica no seu ventre. Então ele gentimente tamborila com os palpos na boca dela, no peito e se ela deixar, acasalam.

As crias vivem com a mãe que as alimenta e protege. Quando o solo está húmido e facil de escavar, as crias saem e constroem as suas tocas na área perto da sua mãe. Esta espécie forma colónias que funcionam como aglomerados urbanos. Vivem em cidade de aranhas.

O que significa que quando se encontrar uma, a sua família estará por perto. Por outro lado, se algo acontecer aquela area, pode-se destruir toda uma cidade que tem sustentado estes animais durante centenas de gerações.

 

[divider type=”thick”]Agora é a sua vez.

Encontrou um animal ou planta que não sabe a que espécie pertence? Envie-nos para o nosso email a fotografia, a data e o local. Trabalhamos com uma equipa de especialistas que o vão ajudar.

Explore a série “Que espécie é esta?” e descubra quais as espécies que já foram identificadas, com a ajuda dos especialistas.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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