O que pode 2021 trazer para a Biodiversidade e para a Conservação da Natureza? Com o ano que começa, a Wilder lança cinco perguntas a especialistas e responsáveis portugueses que trabalham para conhecer ou proteger o mundo natural.
Emanuel Gonçalves é administrador e coordenador científico da Fundação Oceano Azul, professor universitário no ISPA – Instituto Universitário, e investigador do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente.
WILDER: O que espera de 2021 para a Conservação da Natureza em Portugal e no mundo?
Emanuel Gonçalves: Existe uma elevada expectativa que as lições que estamos a tirar dos efeitos da pandemia nas nossas vidas possam ajudar a elevar a natureza nas prioridades políticas dos países. Elas mostram que com menos natureza estamos mais expostos a efeitos dramáticos como os impactos na saúde pública e até na esperança de vida (que irá recuar pela primeira vez nalguns países), mas também tornam óbvias as interdependências entre os humanos e a natureza. A Fundação Oceano Azul tem vindo a chamar a atenção para esta nova narrativa sobre o poder da natureza, que necessita de ser reforçada e ampliada. Construímos um universo paralelo onde acreditámos que a humanidade era autónoma da natureza e, hoje, a realidade que vivemos veio desconstruir esse mito.
Existe, apesar disso, o risco de continuarmos a ignorar estes efeitos e de, com a distribuição generalizada da vacina, querermos rapidamente voltar a onde estávamos, fazer crescer as nossas economias o mais rapidamente possível baseados no atual modelo de desenvolvimento e, com o tempo, minimizar as implicações da destruição da natureza. No entanto, os sinais são positivos quando pensamos que estão hoje em marcha ações concretas dirigidas a alterar o modelo de desenvolvimento baseado em energia de combustíveis fósseis e em atividades que destroem a natureza, para um modelo assente numa atividade económica descarbonizada (assim estamos obrigados pelo Acordo de Paris e pelo Pacto Ecológico Europeu), mas também numa atividade económica que não destrua a natureza e que, pelo contrário, a recupere. A Estratégia Europeia da Biodiversidade 2030 e a estratégia Do Prado ao Prato são caminhos certos para esse fim.
W: No seu entender, quais devem ser as prioridades para este ano em prol da natureza em Portugal? E mais concretamente, para a presidência portuguesa da União Europeia?
Emanuel Gonçalves: Como referiu o Miguel Bastos Araújo na sua entrevista, existem prioridades concretas que estão a ser trabalhadas para a presidência portuguesa e para Portugal, que se centram na relação entre a biodiversidade e as alterações climáticas, e na relação entre a biodiversidade e o oceano. A estas prioridades juntam-se duas ações fundamentais que são a recuperação da natureza na Europa (o restauro ecológico) e o financiamento da conservação da natureza. Na questão da relação da biodiversidade e oceano, todos estes temas se cruzam (biodiversidade, clima, oceano, restauro e financiamento).
A nível Europeu, apesar da Europa ter anunciado que alcançou as metas internacionais de proteção de 10% dos mares europeus, a verdade é que essa proteção não é real. Para dar alguns exemplos recentes da literatura científica, o arrasto de fundo (uma das técnicas mais destrutivas de pesca) ocorre em 98% das áreas marinhas protegidas existentes ao largo do Reino Unido e, no Mediterrâneo, em 99% dessas áreas supostamente protegidas existe pesca, sendo a intensidade do arrasto de fundo maior dentro do que fora das áreas protegidas. Um relatório de dezembro do Tribunal de Contas Europeu indica que, apesar da existência de um quadro regulatório, os mares europeus não beneficiam das políticas de proteção. Em Portugal há também um longo caminho a percorrer com as áreas de proteção total (aquelas que são mais eficazes a proteger e recuperar a biodiversidade) a cobrir apenas 0.001% do mar territorial e zona económica exclusiva do nosso mar.
Durante a presidência portuguesa vão decorrer negociações importantes no âmbito da Convenção da Diversidade Biológica para a adoção de uma agenda ambiciosa para a proteção da natureza e do oceano até 2030, onde o objetivo de proteger 30% dos territórios em áreas totalmente ou fortemente protegidas vai estar em cima da mesa. Vão também definir-se a nível europeu os principais mecanismos e estratégias para implementação da Estratégia Europeia da Biodiversidade 2030. Esta é uma oportunidade para Portugal usar os seus muito eficientes canais diplomáticos para marcar uma posição de liderança efetiva na agenda da biodiversidade europeia e internacional.
Em Portugal, é urgente implementar uma estratégia para uma rede de áreas marinhas protegidas eficaz e de nível de proteção elevado que aproxime o país dos objetivos internacionais de 30% de proteção e ainda definir medidas para o restauro ecológico dos ecossistemas marinhos, para proteger o precioso património natural nacional e promover uma economia azul sustentável que valorize essa biodiversidade. Estão em curso ações que pretendem avançar nesta agenda e é muito importante apoiar estas iniciativas do Ministério do Mar e do Ministério do Ambiente e Ação Climática.
W: Quais as espécies ameaçadas que, na sua opinião, precisam de ajuda premente em 2021?
Emanuel Gonçalves: Destacava no meio marinho alguns exemplos, embora as medidas de proteção devam ser abrangentes e permitir recuperar o funcionamento ecológico integral dos sistemas marinhos. Portugal tem, acreditamos, condições para liderar uma agenda de proteção e recuperação das populações de tubarões e raias a nível nacional e europeu. Estas espécies têm um papel chave nas teias tróficas marinhas e o seu desaparecimento provoca alterações em cadeia com consequências muitas vezes imprevisíveis em diversos elos funcionais. Ou seja, se eliminarmos os predadores de topo de um sistema marinho vamos não só ter um impacto nessas espécies, como desencadear uma sucessão de acontecimentos que vão empobrecer esses ambientes. Alguns destes efeitos podem mesmo refletir-se na base das teias tróficas, por exemplo com o desaparecimento de algas devido à sobrepopulação de ouriços que antes eram predados por espécies que, direta ou indiretamente, estavam saudáveis devido à presença dos predadores de topo.
Um outro exemplo, também marinho, são os bancos de corais e esponjas que constroem ambientes únicos e diversificados dos quais depende um grande número de espécies. Já foram tomadas recentemente medidas importantes para proteger, por exemplo, o coral vermelho. Mas falta ainda uma estratégia integrada que permita proteger de forma efetiva espécies com estatuto de proteção e espécies que desempenham uma função essencial nos ecossistemas ou que se encontram ameaçadas pelas atividades humanas.
Finalizava com os cavalos marinhos que são espécies emblemáticas, hoje ameaçadas devido à captura ilegal e à destruição das pradarias marinhas de que dependem, e para os quais a Fundação Oceano Azul tem vindo a desenvolver uma campanha de ação para a sua proteção em conjunto com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas e diversos outros parceiros.
W: Se coubesse a si decidir, qual seria a principal medida que tomaria este ano para tentar travar a extinção das espécies?
Emanuel Gonçalves: Adotaria medidas que permitissem alcançar, em simultâneo, os seguintes objetivos: proteger o que resta através da criação de uma rede de áreas marinhas protegidas de proteção total ou elevada em 30% do mar português; garantir que as áreas protegidas existentes têm proteção eficaz e estão dotadas de recursos humanos e financeiros adequados para que funcionem; fazer aprovar uma lei do capital natural abrangente que permitisse remunerar a proteção da natureza e cobrar os custos de degradação que permitiriam essa remuneração. O caminho de futuro passa por fazer com que a proteção da natureza gere valor na economia através da sua proteção e não pela sua degradação, como hoje maioritariamente acontece. Um exemplo concreto é perceber que um tubarão ou uma baleia valem muito mais vivos do que mortos porque se criou uma indústria de turismo sustentável que valoriza esses animais, mas que o mesmo deveria acontecer para toda a biodiversidade. Isso só será possível remunerando os serviços dos ecossistemas e o capital natural. Portugal tem todo o interesse em perseguir este objetivo e liderar estas iniciativas no palco mundial dado ser hoje um país muito rico em capital natural, nomeadamente marinho, com vastas áreas sob sua jurisdição.
Se pudesse mesmo acionar uma varinha mágica, invertia a lógica das áreas protegidas passando todo o espaço oceânico a estar protegido e implementaria um sistema de autorização de atividades que teriam de garantir a sustentabilidade dos usos. Isto no fundo é o equivalente a gerir de forma sustentável todo o oceano e a ter vastos espaços marinhos totalmente protegidos (a ciência indica entre 30% e 50%) para garantir a valorização do capital natural e o desenvolvimento de uma economia sustentável e saudável.
W: Qual, ou quais, os projectos na área da Biodiversidade em que estará a trabalhar em 2021 que mais o entusiasmam?
Emanuel Gonçalves: A nível científico estamos a trabalhar, por exemplo, num sistema de clarificação da eficácia e objetivos das áreas marinhas protegidas – o MPA Guide– que será o novo standard para guiar os Governos sobre as medidas de proteção eficazes a tomar. Estamos também a avaliar a eficácia de áreas marinhas protegidas nacionais e a estudar os efeitos das alterações climáticas no oceano.
Na Fundação Oceano Azul estamos envolvidos num número alargado de iniciativas muito entusiasmantes. Destacaria o programa Blue Azores, em parceira com o Governo Regional e a Fundação Waitt, que pretende proteger de forma total 15% da ZEE dos Açores até 2022. No Algarve dinamizámos um processo de “baixo para cima” de construção de uma área marinha protegida de interesse comunitário (AMPIC) que envolveu todas as entidades da região e será entregue ao Governo muito em breve. Numa colaboração com a National Geographic Pristine Seas, estamos a trabalhar com o governo regional da Madeira na expansão da Reserva das Ilhas Selvagens com o objetivo de criar a maior área marinha protegida de proteção total da Europa. Num trabalho coordenado por Miguel Araújo e financiado pelo Fundo Ambiental, estamos a colaborar no estudo “Biodiversidade 2030 contributos para a abordagem portuguesa para o período pós-metas de Aichi”, com os Ministérios do Ambiente e do Mar.
Na frente internacional destacaria a iniciativa “Rise Up for the Ocean– A Blue Call to Action”, dinamizada pela Fundação, que junta já mais de 450 entidades e desenvolveu uma ambiciosa agenda a 10 anos que, se for implementada, permitirá a recuperação do oceano. Envolve 29 ações prioritárias, concretas etangíveis. Nunca até agora se tinham juntado numa iniciativa desta dimensão, abrangência e ambição, as maiores organizações não-governamentais internacionais, as principais fundações que trabalham para o oceano, os representantes dos sindicatos de pescadores e comunidades costeiras da pequena pesca, e os representantes dos povos indígenas, para acordar uma agenda holística, suportada na ciência e que permita responder às principais ameaças para o oceano e construir um futuro sustentável com mais natureza e mais desenvolvimento económico e social. Este processo tem como visão constituir as bases para um futuro “Acordo de Paris” para o Oceano.
Não faltam assim desafios, mas porque estamos hoje numa situação crítica de emergência climática e de crise de extinção de espécies, sabemos também o que precisamos de fazer para inverter esta situação e construir um presente e futuro sustentáveis. Colocar a natureza no centro da estratégia de desenvolvimento dos países é central para reconciliar o desenvolvimento humano com a proteção do planeta.
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Marco Nunes Correia é ilustrador científico, especializado no desenho de aves. Tem em mãos dois guias de aves selvagens e é professor de desenho e ilustração.
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