O que pode 2021 trazer para a Biodiversidade e para a Conservação da Natureza? Com o ano que começa, a Wilder lança cinco perguntas a especialistas e responsáveis portugueses que trabalham para conhecer ou proteger o mundo natural.
Domingos Leitão é o diretor executivo da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), Organização Não-Governamental de Ambiente, de âmbito nacional, parceira da BirdLife International em Portugal.
WILDER: O que espera de 2021 para a Conservação da Natureza em Portugal e no mundo?
Domingos Leitão: O mesmo que espero todos os anos. Que os cidadãos e os decisores políticos entendam que não podemos viver e governar de costas voltadas para a natureza. O ano que passou e a situação pandémica que vivemos deve servir também para lembrar quão frágeis somos nós e o nosso estilo de vida, e quão importante para nós deverá ser a existência de ecossistemas ricos em espécies, que possam exercer as suas funções regulatórias e providenciar os serviços que a humanidade necessita. As pessoas individualmente têm de consumir menos, com mais critério, reduzir os gastos energéticos, os consumos de água e de alimentos com grande pegada ecológica. Os governantes têm de perceber que há mais economia para além da economia de escala, dos combustíveis fósseis, do turismo de massas, da grande distribuição, da agricultura e pesca intensivas e da floresta de produção. Há muita economia para promover, assente no património natural e cultural, nas energias alternativas, no restauro ecológico, na conservação da natureza, na agricultura extensiva e nos sistemas agro-silvo-pastoris, nos mercados locais, nas cadeias curtas de distribuição e na gestão sustentável dos recursos marinhos.
W: No seu entender, quais devem ser as prioridades para este ano em prol da natureza em Portugal? E mais concretamente, para a presidência portuguesa da União Europeia?
Domingos Leitão: A política agrícola é a grande prioridade. Este é o setor económico que mais dinheiro recebe da UE, e também um dos que mais passivos ambientais provoca, ao nível da destruição do solo, do consumo de água, da produção de gases com efeito de estufa e da perda de biodiversidade. Os cidadãos europeus pedem uma nova Política Agrícola Comum (PAC) e a Comissão Europeia respondeu ao desafio com o Pacto Ecológico e a estratégia do “Prado ao Prato”. No momento crítico de aprovação da nova PAC os interesses da agricultura intensiva levaram a melhor e o Parlamento Europeu e o Conselho acabaram por aprovar alterações pouco ambiciosas e que permitem aos Estados membros manter o estado das coisas. Cabe agora ao Ministério da Agricultura implementar em Portugal uma PAC que sirva os agricultores que mais precisam, em regiões remotas do país e na Rede Natura 2000, com sistemas de produção extensivos e diversificados, que não produzem escala económica, mas sim qualidade ambiental, biodiversidade, diferenciação e valorização do território. Vão ter de reduzir o apoio às fileiras, ao regadio intensivo e à agricultura de precisão, e aumentar o apoio aos circuitos curtos e locais, aos sistemas poli-culturais e à agricultura de conservação. Só assim a PAC vai evitar o despovoamento rural e obter o máximo de benefícios públicos da atividade agro-florestal.
A segunda prioridade, mas não menos importante, é o aumento do investimento na conservação da natureza. Portugal tem ainda que designar novas áreas marinhas protegidas nos Açores e áreas marinhas e terrestres no Continente para cumprir as suas obrigações e compromissos. Mas designar não é suficiente, é necessário gerir e investir na proteção dessas áreas. A maior parte das áreas da Rede Natura 2000 em Portugal carece ainda do necessário plano de gestão, ou seja não tem definidos os objetivos de gestão, nem os intervenientes, e muito menos os mecanismos de financiamento. Grande parte das espécies e habitats prioritários encontra-se num estado desfavorável de conservação. Por isso, é urgente investir na conservação destas espécies e no restauro ecológico destes habitats, bem como envolver os agentes económicos e a sociedade civil nesta grande tarefa. O Ministro do Ambiente parece não entender a importância e a urgência da conservação da natureza e tarda em apoiar os intervenientes e em dedicar o financiamento necessário. Não é por falta de dinheiro, que está disponível em fundos comunitários (LIFE, FEADER, FEDER, etc.) e nacionais (Fundo Ambiental), mas claramente por falta de visão e vontade política. Acreditamos que a atitude do Ministério do Ambiente terá de mudar. Se não for por força da pandemia e da crise da biodiversidade, será por força dos cidadãos e das ONGA na oposição firme às decisões e opções erradas, como no caso do petróleo ao largo do Algarve, do lítio no Gerês ou do novo aeroporto no estuário do Tejo.
A presidência Portuguesa irá dar prioridade ao mecanismo de apoio à recuperação da economia, a denominada “bazuca económica”. Isto é muito importante para Portugal e para a maioria dos Estados membros. Mas a aplicação destas verbas será uma tragédia ambiental e não nos protegerá de novas pandemias, se for aplicada na mesma economia destrutiva que temos tido até agora. O apoio à recuperação terá que ser aplicado na diversidade económica e na biodiversidade, na proteção dos recursos naturais terrestres e marinhos, no transporte sustentável, no planeamento energético, na economia e mercados de proximidade e na educação para a cidadania e sustentabilidade. Os cidadãos portugueses têm de estar muito alerta para evitar que este apoio económico vá para o transporte aéreo e deixe as pessoas sem comboio para ir trabalhar, ou vá para as Mega centrais fotovoltaicas e deixe as pessoas sem apoio para colocar painéis solares no seu telhado, ou vá para o olival ou abacatal super-intensivos e deixe os agricultores da Rede Natura 2000 sem alternativa, ou vá para novos campos de golfe e deixe as aldeias históricas do interior abandonadas. Entre muitas outras opções políticas erradas que poderão estar na calha dos decisores, às quais temos que dizer não.
W: Quais as espécies ameaçadas que, na sua opinião, precisam de ajuda premente em 2021?
Domingos Leitão: Há três grupos de aves que necessitam de ação e investimento publico em ações de conservação, todos eles com a suas espécies prioritárias. As grandes aves de rapina que incluem predadores de topo como a águia-imperial e a águia-perdigueira e espécies necrófagas como o abutre-preto, o britango e o milhafre-real. Estas espécies sofrem mortalidade grave de origem humana, como o uso ilegal de veneno, a eletrocussão em linhas elétricas e perturbação e destruição de locais de nidificação, que mantém as suas populações em níveis muito baixos, em risco de desaparecerem, impossibilitando que possam efetuar os serviços de ecossistema de controlo e limpeza dos ecossistemas. É urgente combater de forma efetiva o problema atroz e o risco de saúde pública que é a utilização ilegal de venenos, e aumentar o esforço de correção de linhas elétricas, bem como proteger de forma efetiva os territórios de nidificação destas espécies sensíveis.
Um outro grupo fortemente ameaçado são as aves marinhas. Espécies em perigo e vulneráveis como a gaivota-de-audouin, a pardela-balear, a freira-da-madeira, a freira-do-bugio e o painho-de-monteiro, sofrem mortalidade acidental nas artes de pesca, mortalidade por efeito da poluição luminosa, perda de locais de nidificação por espécies de mamíferos introduzidas e por perturbação das atividades humanas. É urgente trabalhar com a comunidade de pescadores para encontrar soluções para diminuir a captura acidental de aves marinhas em artes de pesca, ao mesmo tempo conhecer melhor e avançar com estratégias de redução da poluição luminosa na Madeira e nos Açores e, acima de tudo, proteger as colónias de aves marinhas contra os predadores introduzidos e reduzir a perturbação resultante das atividades turísticas e de lazer.
Por último, mas não um problema menor, temos as aves que dependem dos sistemas agrícolas. O regadio e a agricultura intensiva têm levado à simplificação e à perda de biodiversidade em vastas áreas rurais de Portugal, em particular no Alentejo. Este processo leva à destruição do habitat e à redução drásticas das populações de espécies como o sisão, o tartaranhão-caçador, a rola-brava e o picanço-barreteiro, bem como de muitas outras espécies de aves. Não queremos um mundo rural sem aves, e por isso, temos de trabalhar com os agricultores, para que implementem os tipos de cultivo e o maneio adequado para favorecer o habitat destas espécies ameaçadas. Isto além de confiança e conhecimento, requer mais dinheiro da política agrícola comum. O Ministério da Agricultura tem que colocar mais dinheiro do Plano de desenvolvimento rural em medidas agroambientais dirigidas para os agricultores e criadores de gado dentro da Rede Natura 2000, para possam realizar um atividade favorável à conservação da natureza.
W: Se coubesse a si decidir, qual seria a principal medida que tomaria este ano para tentar travar a extinção das espécies?
Domingos Leitão: Se eu fosse Ministro de Ambiente defenderia de forma intransigente a Rede Nacional de Áreas Protegidas e a Rede Natura 2000, investindo mais nos recursos humanos e na capacidade de intervenção do ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas) e da APA (Agência Portuguesa do Ambiente), pugnando pelo cumprimento das Leis, nomeadamente as diretivas Aves e Habitats e a Lei do Impacto Ambiental, e canalizando mais verbas para o restauro ecológico e a proteção das espécies. Investia pelo menos 10% do Fundo Ambiental (um fundo de 400 milhões de euros anuais) em medidas para a biodiversidade, no apoio à atividade do ICNF, das ONGAs e de outros parceiros públicos e privados. Por exemplo, garantia o cofinanciamento nacional de projetos LIFE Natureza em todo o país. O programa LIFE é atualmente o mecanismo de financiamento mais eficaz para intervenções SOS e inovadoras no salvamento de espécies e de habitats em risco na Rede Natura 2000. Desse modo, garantiria a aprovação de mais projetos LIFE para Portugal, com ganhos comprovados em eficácia e resultados de conservação da natureza, no envolvimento das populações e no desenvolvimento económico local.
W: Qual, ou quais, os projectos na área da Biodiversidade em que estará a trabalhar em 2021 que mais o entusiasmam?
Domingos Leitão: A SPEA e os seus parceiros desenvolvem atualmente vários projetos de conservação que considero pioneiros e determinantes para a conservação da natureza em todo o território nacional. Em Portugal Continental iniciamos há um ano o projeto LIFE Ilhas Barreira, para a gestão e proteção das ilhas barreira de areia que são o garante da existência de todo o ecossistema da Ria Formosa. Estamos a iniciar dois outros projetos ambiciosos, o LIFE LxAquila e o LIFE PanPuffinus, o primeiro para a conservação da população de águia-perdigueira (um predador de topo) na região de Lisboa, e o segundo para redução da captura acidental de pardela-balear em artes de pesca na zona centro. Na Madeira e nos Açores estamos a terminar o projeto Interreg LuMinAves, o primeiro grande projeto que abordou o problema do impacto da poluição luminosa nas aves marinhas. Com os resultados deste projeto e das ações piloto implementadas pretendemos continuar a trabalhar para reduzir esta ameaça de forma mais abrangente nas duas regiões autónomas.
Na área da ciência cidadã para a recolha de informação vital sobre as populações de aves, vamos em 2021 terminar o terceiro Atlas das Aves Nidificantes em Portugal e dar início ao processo de revisão da Lista Vermelha das Aves de Portugal. Apesar da pandemia, que afeta todas as atividades, incluindo a monitorização do património natural, tentaremos manter o extenso programa de monitorização de aves da SPEA (Censo de Aves Comuns, projeto NOCTUA, projeto Arenaria, Contagens de Aves no Natal e Ano Novo, etc). Nos arquipélagos da Madeira e dos Açores iremos terminar o projeto pioneiro Seabird Macaronesian Sound, que pretende monitorizar as colónias mais importantes de aves marinhas através dos registos sonoros das aves. Em São Miguel, nos Açores, iremos realizar em junho o “IV Atlas do Priolo”, para contabilizar a população total desta espécie endémica e ícone da região. Já a pensar nos futuros cidadãos ativos pela natureza temos o projeto “Aprende, Conhece e Participa”, que pretende fornecer ferramentas a professores e alunos a intervirem como cidadãos na área ambiental.
O trabalho da SPEA é o exemplo do trabalho importante, abrangente e eficaz que as ONGAs nacionais conseguem fazer na conservação do património natural. Conseguem mobilizar parceiros públicos e privados, centenas de voluntários e produzir resultados efetivos e duradouros, com pouca ajuda do Estado. Na realidade, apenas o Governo Regional dos Açores tem entendido o papel das ONGAs e sabido apoiar e aproveitar a capacidade destas organizações. Imaginem o que poderíamos fazer, se o Ministério do Ambiente e o Governo da Madeira tivessem o mesmo entendimento sobre o papel das ONGAs?
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Marco Nunes Correia é ilustrador científico, especializado no desenho de aves. Tem em mãos dois guias de aves selvagens e é professor de desenho e ilustração.
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