“Enquanto não valorizarmos o nosso património e interiorizarmos a importância da sua defesa, na prática os desabafos acalorados em tempos de crise ou em manifestações não passarão disso mesmo”, afirma António Heitor.
Um ano diferente mas na prática semelhante a tantos outros. Será que nos apercebemos disso?
Não sei se é da idade mas cada vez dou mais valor aos pequenos momentos da vida. Da longa lista deste ano destaco três. Esta distinção deve-se ao facto de que todos me demonstraram a cumplicidade entre o mundo rural e o natural, ao mesmo tempo que me puseram a pensar sobre a complexidade inerente a essa relação. Fazem-me estar mais convencido de que é tão errado “ruralizar o mundo natural” quanto “naturalizar o mundo rural”. Ambos se regem por regras e lógicas próprias que quando aplicadas ao “outro mundo” destroem a diversidade e a complexidade de relações que é a base da sobrevivência dos seus recursos.
Olhando para os últimos 12 meses estivemos pandémicos e confinados enquanto uma guerra começava. Lá desconfinámos e a água começou a faltar, mas fomos e voltámos de férias, enquanto assistíamos outra vez a grandes incêndios e à seca instalada no país. Todavia recomeçámos as aulas sabendo de um “novo” aeroporto, fizemos greves e fechámos escolas, fomos ao mundial e tivemos cheias nos “nossos quintais”.
Dito assim foi um ano e peras. Na verdade foi apenas mais um ano, com situações gravíssimas é verdade, com problemas complexos e de resolução complicada. Mas será que algo mudou de substancial? Será que mudámos algo nos nossos comportamentos e atitudes? Infelizmente não, embora aceite que possam ter existido mudanças “individuais e localizadas”, embora de substancial pouco eficientes.
O que me leva a ter este aparente pessimismo? Em primeiro lugar uma percepção de que continuamos longe de conhecermos e valorizarmos os nossos recursos, sejam eles naturais, rurais ou culturais. Em segundo lugar, porque continuo a ver lixo por todo o lado, o que não depende de regulamentação ou vontade política. Por último, porque esses momentos “naturais” a que assisti contradizem a retórica do fim que se aproxima e dos cenários apocalípticos associados. Não me parece que esta “narrativa” seja seguramente a melhor forma de consciencializar as mentes de todos nós, até porque o lixo continua no chão.
Mas vamos lá aos ditos momentos. O mais relevante aconteceu em Agosto, quando reencontrei a 44. na Lezíria de Vila Franca, em pleno estuário do Tejo. Esta águia-pesqueira nascida em França, anilhada pelo Rolf Wahl em 2014, regressa sempre ao mesmo sítio para passar o Outono e o Inverno, regressando a França para se reproduzir. Desde 2016, o nosso reencontro acontece no mesmo poste, muitas das vezes interrompendo o almoço da 44 francesa, mas ela parece pouco incomodada com esse facto.
O mais curioso é ser num poste de metal, nada selvagem, no meio de uma zona de agricultura intensiva dominada por arrozais, num dos maiores estuários da Europa, rodeado por quase 3 milhões de habitantes, cidades enormes, autoestradas, portos e aeroportos, caminhos-de-ferro e uma miríade de actividades económicas. Mas porque raio esta francesa teimosa gosta tanto dum sítio assim tão “humanizado”? Será que somo assim tão malvados? Se calhar não.
Enquanto me delicio a ver esta velha conhecida a comer, pergunto-me quantos desses milhões de habitantes sabem que a têm por vizinha durante quase meio ano.
Outro momento memorável aconteceu logo no início do Verão junto a Montalvão, quando me deparo com uma “debandada” voadora de abutres a sair da “caminha”. O local em causa é já conhecido por ser utilizado por estas aves necrófagas e não foi a sua presença que me causou espanto. Foi o facto de estarem a dormir nas árvores à beira da estrada e de terem escolhido o exacto momento em que eu passava de carro para levantar voo e irem à vida deles.
Não se tratando de uma metrópole, pois estamos a falar de uma zona rural do distrito de Portalegre encostada à fronteira com Espanha, onde o rio Sever encontra o Tejo, imagino que já teriam passado alguns carros por aquele sítio e que os abutres não se assustaram com isso. Nem mesmo a SiS Sachs que vi passar antes nessa direcção as assustou. Acredito que não terá sido pelos meus lindos olhos que levantaram aquando da minha passagem. Levantaram porque lhes apeteceu e porque precisam de ir comer. Ou seja, foram à vida deles.
Os nossos abutres, mais concretamente os grifos e os abutres-negros, são das maiores aves que podemos encontrar nos nossos céus. Sendo necrófagos têm um papel crucial na vitalidade dos nossos ecossistemas, pois são um dos responsáveis pela limpeza dos nossos espaços naturais e rurais. Estando no fim da cadeia alimentar, estas aves sofrem as consequências de problemas que se acumulam desde a base dessa cadeia. Por exemplo, através da ingestão regular de alimento com pequenas quantidades de alguns produtos químicos, até atingir doses letais.
Ou seja, estas aves são um dos excelentes indicadores de qualidade do meio. Se por um lado as nossas populações têm problemas de conservação, por outro estão a aumentar e são hoje habitantes comuns de muitas das nossas zonas rurais mais interiores, estando mesmo a “colonizar” áreas abandonadas há muito tempo.
Para além disso são aves intimamente ligadas à pecuária extensiva, fonte de alimento essencial para estas aves. Se a este facto eu juntar o que referi anteriormente, o de serem bons indicadores do meio, posso então concluir que provavelmente os nossos sistemas pecuários extensivos não serão assim tão “demoníacos” como muitos afirmam.
Sim, existem problemas e algumas técnicas ou práticas que têm de ser alteradas, como a utilização de veneno ou o abate de aves selvagens. Mas isso são problemas que não ofuscam a importância que a pecuária extensiva tem nos nossos ecossistemas e que a sua gestão é hoje muito melhor que no passado. Assim sendo, pergunto-me se estamos conscientes da implicação que estratégias de redução do consumo de carne terão no nosso património natural? Não me parece.
Ainda memoráveis continuam a ser os momentos em que consigo observar com atenção os nossos caimões. Não estou a falar do réptil, mas sim da ave também conhecida por camão ou galinha-sultana, mas eu prefiro caimão. Esta grande ave aquática azulada e de “nariz” e pernas vermelhas não deixa de me surpreender e quanto mais observo e leio sobre ela, mais importância dou a todos esses momentos.
O camão depende da qualidade dos nossos habitats e ecossistemas aquáticos. A fraca qualidade da água da segunda metade do século passado foi crucial para colocar este ralídeo (ave da família Rallidae) em perigo de extinção, a tal ponto de ser fundamental proteger os últimos refúgios naturais e desenvolver esforços de conservação que passaram por criação em cativeiro para libertação em meio natural.
Fruto destes esforços e da melhoria generalizada dos sistemas de tratamento das águas (entre outros aspectos), esta ave é hoje muito mais frequente que no passado recente e tudo parece apontar que assim continue.
Ou seja, estamos perante uma ave que depende de ecossistemas altamente pressionados pelos humanos e pelas nossas comunidades e aparentemente soubemos inverter a tendência de destruição ao ponto de começarmos a ver resultados positivos. Tal significa que esteja tudo bem e que podemos esquecer o assunto e voltar a práticas antigas? Não, muito pelo contrário.
Significa que precisamos de continuar a desenvolver formas de coexistência capazes de permitir o desenvolvimento das nossas comunidades e ao mesmo tempo preservar e melhorar as condições naturais desses ecossistemas.
Este para mim é o factor crucial em todos os “momentos” que destaquei. Apesar desta maior relevância, na verdade não é nada de novo nem sequer recente. Todos estes anos fui adquirindo momentos que sempre me conduziram para esta necessidade de aprendermos a conviver com os recursos que temos à nossa volta, sem com isso colocar em causa o nosso próprio desenvolvimento.
Por tudo isto reafirmo que apesar de tudo, não aprendemos ainda a questão fundamental: enquanto não valorizarmos o nosso património e interiorizarmos a importância da sua defesa, na prática os desabafos acalorados em tempos de crise ou em manifestações não passarão disso mesmo. Aliás só assim se entende que continuemos a ter carradas de lixo no chão. Só assim se entende que continuemos a preferir alimentos importados em vez de consumir os nossos. Só assim se percebe porque continuamos sem aumentar o nosso conhecimento sobre o nosso património natural e rural, que na prática será a mesma coisa.
Enquanto não compreendermos a complexidade dos sítios onde vivemos e as consequências das nossas escolhas, as mensagens bem-intencionadas não passarão de simples jargões políticos. Um dos exemplos é o da substituição de plástico por papel e madeira (quando possível) e ao mesmo tempo defender o fim das monoculturas florestais, sem perceber que sem elas não conseguiremos substituir o plástico.
É urgente dedicarmos mais tempo a conhecer a realidade natural das coisas e gastarmos mais tempo a perceber a complexidade da vida antes de adoptarmos frases feitas simplistas e simplórias, que podem ter grande impacto, mas de operacionalidade nula.
António Heitor, orgulhosamente Naturalmente Rural! Bom ano de 2023!
Nascido em 1975, António Cláudio Heitor é licenciado em Engenharia Florestal pelo Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa e tem desenvolvido a sua actividade profissional centrado em questões florestais, de promoção do modelo cooperativo, de desenvolvimento rural, de gestão de recursos naturais, impacte ambiental e cinegéticas.
É técnico florestal e de recursos naturais da CONFAGRI desde 2003. Paralelamente, tem participado em trabalhos de consultoria na área florestal, agrícola, ambiental e de avaliação de políticas. É auditor de Sistemas de Certificação Florestal Sustentada, no âmbito dos sistemas PEFC e FSC. É também guia de observação de fauna e flora no EVOA e na Companhia das Lezírias. Recentemente iniciou um projeto de comunicação e imagem, o Naturalmente Rural, que tem por objectivo manter os nossos valores rurais e naturais vivos.