Crónicas naturais: águias e abutres do mar

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Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica, mergulhamos na natureza da Guiné-Bissau e da ilha João Vieira, no arquipélago dos Bijagós.

Bijagós, Dezembro 2021

Esta manhã caminhei uma dúzia de quilómetros à volta de uma ilha (João Vieira) do arquipélago dos Bijagós (Guiné-Bissau). Encontrei um pescador na praia, conversámos brevemente, dos peixes, e mais ninguém. Doze quilómetros, um sossego raro em praias deste mundo cada vez mais acessível aos turistas e aos viajantes globais.

Praia bijagó. Foto: Paulo Catry

Estou no coração de um parque nacional (de João Vieira e Poilão) que tenho tido a fortuna de ajudar a criar, a estudar e a gerir. Sorte mesmo, quando cruzamos latitudes vemos que a vida é feita de sorte, da sorte que agarramos, ou da falta dela, o resto (o tão badalado mérito) está bastante inflacionado, parece-me.

Ao longo dos quilómetros de praia (quem sonha com banhos prolongados desengane-se já, abundam por aqui, nas águas rasas, raias de espigões dolorosos) fui vendo aves de rapina que vivem deste mar. Um trio espantoso, todas elas de tamanho considerável.

Talvez o cotedua (nome crioulo do abutre-das-palmeiras Gypohierax angolensis) seja o menos carismático membro do trio, mas é particularmente notável.

Cotedua ou abutre-das-palmeiras Gypohierax angolensis é uma espécie parcialmente frugívora, comum no arquipélago dos Bijagós. Foto: Mohamed Henriques

Uma ave de rapina cujo regime é parcialmente vegetariano em toda a sua área de distribuição africana. Os frutos de palmeiras Elaeis guineensis, o chabéu, são um elemento fundamental da dieta. As palmeiras crescem na orla marítima e entre banquetes frugívoros estas aves florestais aventuram-se diariamente no mar, nos muitos quilómetros quadrados expostos pela maré-baixa. Aproveitam cadáveres diversos e fazem-se pescadoras costeiras de seres trôpegos, como caranguejos, crias de tartaruga, certos peixes das poças intermareais*.  

Mais ativos são os guinchos (também conhecidos por águias-pesqueiras) Pandion haliaetus vindos da Europa, bem nossos conhecidos, migradores de longa distância. Estão por toda a parte nos Bijagós.

Os guinchos Pandion haliaetus europeus são predominantemente migradores transarianos, invernando nas costas da África ocidental. Foto: Bernd Lindner/Pixabay

Aqui na ilha de João Vieira, o Hamilton Monteiro, um amigo guineense, fotografou um com anilha alemã, mas está confirmada a presença de outros, provenientes da Escandinávia e da Escócia, por exemplo. Andam solitários para cá e para lá ao longo da frente de praia, cada um no seu setor negligentemente defendido, mergulham uma e outra vez sem sucesso, até que finalmente lá sacam alguma tainha de corpo roliço, por vezes até peixes surpreendentes, como pequenos seláceos.

Falta mencionar o patrão-de-costa, a sonora águia-pesqueira-africana Haliaeetus vocifer. Exerce o seu despotismo com alguma frequência, roubando o sustento aos demais. Plumagem orgulhosa, pios de notório alcance, espalha-se em baixa densidade por estas costas. Sem ser rara, não se compara aos coteduas, que em certas ilhas sem perturbação se contam às centenas. 

Casal de águias-pesqueiras-africanas Haliaeetus vocifer perdidas na vasta copa de uma cabaceira ou baobab Adansonia digitata; estas árvores são muito frequentes ao longo das praias bijagós. Foto: Paulo Catry

Um dia, na minha próxima vida, gostava de andar por estas rotas migratórias sem me lembrar da própria existência. Um dia é pouco, queria um ano, e muito mais, pairando como um guincho sobre lagos e praias. Ser só testemunho transumante de horizontes amplos, de cordilheiras e de glaciares no Norte e, no Sul, das aldeias africanas repletas de crianças que se entreajudam (entreajudam-se mesmo, bastante livres de certas patologias sociais, civilizadas e modernas).

Amanhecer numa paisagem típica do litoral bijagó. Foto: Daniel Lopes

Ser espectador dos mangais e dos recifes, do crescimento tectónico das montanhas. Esperar a chuva e o florir das buganvílias, o zumbido das abelhas selvagens, anémonas, rémoras coladas às mantas que esvoaçam no azul. Ver sem ser nem ter nada. Eu só pedia vistas de guincho e movimento migratório. Repouso no marulhar da paisagem, bijagó porventura, litoral.

* Carneiro et al 2017. Ostrich 88:113-121


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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