Na série de entrevistas Investigadores pela Natureza, a Wilder fala com cientistas que se dedicam a tentar resolver alguns dos maiores desafios da biodiversidade e sustentabilidade em Portugal. Hoje, conheça César Garcia, investigador na área da ecologia e taxonomia de briófitos, curador da coleção de briófitos do Herbário LISU (MUHNAC) e coordenador do Núcleo de Jardins Botânicos da Universidade de Lisboa.
WILDER: Quem é o César Garcia como cientista?
César Garcia: Mais do que dedicar-me exclusivamente à ecologia, percebi durante o curso na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) que o meu caminho seria a taxonomia. Ainda antes disso, no secundário, tive professores muito experientes que souberam motivar os alunos a seguirem os seus percursos académicos. No meu caso, ficou claro desde cedo que seria a Biologia.
Na FCUL, voltei a encontrar professores extraordinários, que incentivavam os estudantes a integrar projetos, colaborar em trabalhos e explorar as suas aptidões naturais. No terceiro ano, optei pela área de Biologia Vegetal Aplicada e tive cadeiras que me marcaram profundamente, como Botânica Criptogâmica, e que foram lecionadas por docentes que deixaram marca. Foi também durante essa fase que comecei a colaborar com o projeto Hypnum, no então Museu Laboratório e Jardim Botânico atualmente parte do Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa (MUHNAC). Aí percebi claramente que gostava de ir para o campo com um GPS (ainda numa fase bastante inicial da tecnologia), georreferenciar populações de plantas, recolher dados e analisá-los estatisticamente, descobrir novas populações e, com isso, compreender melhor a biodiversidade e relacionar com variáveis ambientais.
Desde criança que gostava de passar tempo no campo, especialmente na região de Casével, perto de Santarém, onde passava horas a observar a natureza. Quando entrei no Museu, comecei a sair para o campo com pessoas que partilhavam essa paixão e que tinham um conhecimento profundo das plantas e dos seus habitats não apenas de uma região, mas de Portugal inteiro, Espanha, as ilhas atlânticas, entre outros territórios.
Foi este percurso, feito de experiências formativas e encontros com grandes biólogos, que me levou a seguir o estudo taxonómico e ecológicos das plantas. Os centros de investigação e os seus investigadores desempenharam também um papel crucial nesse caminho, nomeadamente o Centro de Ecologia e Biologia Vegetal (CEBV), o Centro de Biologia Ambiental (CBA), e atualmente o Centre for Ecology, Evolution and Environmental Changes (cE3c), onde continuo a desenvolver a minha atividade científica.
W: Quais os principais objetivos e descobertas da sua investigação em briófitos?
César Garcia: Desenvolvo estudos em taxonomia e ecologia de briófitos desde os anos 90. Os principais objetivos sempre foram aumentar o conhecimento sobre os padrões de distribuição das espécies de briófitos, tanto em Portugal como em países africanos de língua portuguesa, nomeadamente São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, onde tenho realizado trabalho de campo.
Durante a licenciatura, fiz um primeiro estágio no Parque Natural da Serra da Estrela, seguido de um segundo estágio, financiado pelo atual Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que me permitiu realizar trabalho de campo mais aprofundado. Nesse contexto, tive a oportunidade de descobrir populações de plantas únicas em Portugal, como a Orthotrichum shawii Wilson, e de trabalhar com biólogos experientes que estudavam a região, como Jan Jansen, colaborando também na determinação das suas colheitas, com o apoio fundamental da Doutora Cecília Sérgio e da Professora Manuela Sim-Sim.
Ainda hoje, a Serra da Estrela é a região mais biodiversa do país em termos de briófitos. Faria todo o sentido, por esta razão e por muitas outras que lhe fosse atribuído o estatuto de Parque Nacional, dada a singularidade das suas variáveis ambientais e a sua relevância para a conservação.
Posteriormente, realizei o doutoramento nos carvalhais da Rede Natura 2000 em Portugal, onde me especializei no estudo das comunidades epifíticas de briófitos, aqueles que crescem sobre os troncos e ramos de várias espécies de carvalhos. Este trabalho permitiu-me conhecer em profundidade alguns dos bosques mais bem preservados do país, estudar a sua flora e colher material que hoje se encontra depositado no Herbário LISU (MUHNAC).
Seguiu-se uma etapa fundamental da minha carreira: um pós-doutoramento em São Tomé e Príncipe, onde estudei a biodiversidade de briófitos na floresta tropical, contribuindo para o conhecimento de um dos hotspots mundiais de diversidade biológica.
Ao longo do tempo, herborizei cerca de 15.000 espécimes de plantas, muitos provenientes da Península Ibérica, Açores, Canárias, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Descrevi espécies novas para a Ciência, como Zygodon catarinoi e Dendroceros paivae, em homenagem a dois ilustres botânicos portugueses, bem como novas adições à flora da Europa, África, e a países como Portugal, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Mais recentemente, participei também na descrição de Exormotheca martins-loussaoae, uma nova hepática dedicada a outra botânica e ecóloga, e de duas espécies novas de fungos colhidas em África: Megasporia insularis e Porogramme príncipes.
Mas não são apenas as espécies novas que têm valor. Cada registo da presença de uma espécie num determinado local e momento constitui um dado histórico valioso uma peça fundamental da “biblioteca climática” que é um herbário. Estes registos são essenciais para compreender padrões de distribuição, mudanças ambientais e fenómenos ecológicos ao longo do tempo.
W: Qual é a importância do Atlas e Livro Vermelho dos Briófitos Ameaçados de Portugal, do qual foi coautor, para a conservação da biodiversidade no país?
César Garcia: Este tipo de trabalho é fundamental para qualquer grupo taxonómico, seja de plantas ou animais. A possibilidade de produzir uma lista ou livro vermelho é, por si só, indicadora de um longo percurso de investigação, que inclui muitas décadas ou mesmo séculos de trabalho de campo, de recolha de espécimes e de sistematização do conhecimento. No caso dos briófitos, isso refletiu-se na existência de uma vasta base de dados florísticos, coleções em herbário bem documentadas e estudos científicos prévios, que tornaram possível o Livro vermelho.
Este trabalho é uma ferramenta essencial para a conservação, pois permite orientar políticas públicas, estratégias de gestão em áreas protegidas e ações locais de valorização da biodiversidade. É igualmente útil para territórios não oficialmente protegidos, mas com elevado valor ecológico, como algumas áreas identificadas por municípios e freguesias empenhadas na proteção do seu património natural.
Uma parte significativa do trabalho de campo que alimentou esta obra decorreu no âmbito de estudos de impacto ambiental de obras públicas, os quais permitiram estudar com detalhe ecossistemas antes da sua modificação. Um bom exemplo é o vale do Tua, onde foram identificadas espécies com elevado estatuto de conservação, listadas na Diretiva Habitats, que foram georreferenciadas, e recolhidas para o herbário antes do enchimento da barragem. Através da análise dos espécimes de herbário e com o uso de ferramentas de geoestatística, conseguimos identificar outras áreas potenciais para a ocorrência de espécies raras ou ameaçadas no vale do Tua e direcionar o trabalho de campo para esses locais.
Este atlas teve também uma dimensão internacional: serviu como base científica para a elaboração da Lista Vermelha dos Briófitos da Europa, promovida pela UICN, na qual a nossa equipa do Museu participou. Por isso, considero essencial que os ministérios e secretarias de Estado com responsabilidade sobre o ambiente e a biodiversidade continuem a fomentar (com legislação) os estudos de impacto pois são essenciais para o conhecimento porque ajudam a proteger o nosso património natural e a cumprir compromissos internacionais em matéria de conservação.
W: Enquanto curador da coleção de briófitos do herbário LISU e coordenador de jardins botânicos, como vê o papel destas instituições?
César Garcia: Vejo os herbários e os jardins botânicos como pilares fundamentais da botânica e da preservação da biodiversidade. No caso do herbário LISU, que alberga a maior coleção de briófitos em território nacional, trata-se não apenas de um acervo histórico e taxonómico de elevado valor científico, mas também de uma base essencial para a investigação sobre diversidade biológica, alterações climáticas, biogeografia e conservação de grupos frequentemente negligenciados. Ao conservar espécimes, o herbário permite revisões taxonómicas, estudos moleculares, deteção de espécies invasoras ou ameaçadas, a compreensão de padrões ecológicos ao longo do tempo, alterações climáticas, etc.
Por outro lado, os jardins botânicos, enquanto espaços vivos e dinâmicos, complementam esta missão ao traduzirem o conhecimento científico em ações concretas de educação ambiental, sensibilização pública e conservação in situ e ex situ. São lugares privilegiados para formar cidadãos conscientes, capacitar técnicos e investigadores e testar estratégias de adaptação às alterações climáticas e conservação de espécies ameaçadas. Um exemplo recente desta relevância foi a deteção, no Jardim Botânico de Lisboa, de um fungo perigoso com impacto potencial na economia nacional, um sinal claro da importância destes espaços na vigilância ambiental e sanitária.
A articulação entre herbário e jardim botânico permite uma abordagem integrada e multidisciplinar, cada vez mais necessária face aos desafios ambientais globais. Juntos, assumem um papel estratégico na implementação de políticas de conservação da biodiversidade, na promoção da literacia científica e no reforço das redes internacionais de colaboração científica.
W: Que ameaças enfrentam atualmente as comunidades de briófitos
César Garcia: As comunidades de briófitos enfrentam hoje um conjunto de ameaças múltiplas, muitas vezes subestimadas devido à sua pequena dimensão e ao reduzido conhecimento público sobre a sua ecologia e importância. Entre as principais ameaças destaco os múltiplos incêndios florestais, as alterações no uso do solo – como desflorestação, urbanização e intensificação agrícola – que originam a fragmentação e destruição de habitats. A poluição atmosférica e da água que afetam diretamente muitas espécies sensíveis pertencentes a diferentes géneros. As alterações climáticas, que estão a alterar a disponibilidade hídrica, os regimes térmicos e a frequência de eventos extremos, com impactos particulares em comunidades especializadas, como as de montanha ou zonas húmidas e os padrões de distribuição de muitas espécies. As espécies invasoras, que alteram as condições microambientais e competem com os briófitos nativos, exemplo do Campylopus introflexus. E, não menos importante, a falta de conhecimento e visibilidade, que dificulta a integração dos briófitos nas políticas de conservação e ordenamento do território.
É fundamental uma inventariação e monitorização contínua das comunidades incluindo a criação de listas vermelhas atualizadas e a cartografia de espécies e habitats sensíveis. Proteção legal e real dos habitats críticos, integração dos briófitos em planos de gestão e avaliação ambiental, promovendo a sua inclusão nos indicadores de qualidade ecológica. A educação e capacitação de técnicos e gestores sobre a importância ecológica dos briófitos e os requisitos para a sua conservação. O apoio à investigação científica, tanto em taxonomia e ecologia como em biogeografia e resposta às mudanças ambientais que já estão a acontecer. Proteger os briófitos é, em última instância, proteger o “mundo à microescala” e os processos ecológicos de que dependem muitos outros organismos.
W: Que conselhos daria aos jovens investigadores que estão a iniciar a sua carreira?
César Garcia: Costumo dizer aos meus alunos de Biologia Vegetal para nunca desistirem e seguirem sempre a sua aptidão natural, e sobretudo irem para o campo se querem ser biólogos. O percurso é exigente e, por vezes, solitário, mas a curiosidade, o gosto e a persistência são muito importantes. Recordo sempre um dos meus melhores professores, o Professor Fernando Catarino, que dava verdadeiras aulas de entusiasmo, ligava temas aparentemente distintos e despertava em nós o gosto pelo conhecimento. Era e ainda é um verdadeiro mestre em promover o interesse e a nossa própria procura de respostas, algo que tento também transmitir aos meus alunos. Também ouvi uma intervenção recente do Professor Galopim de Carvalho que, vindo de uma área distinta, partilha a mesma convicção: motivar. E isso é, para mim, essencial. A Ciência faz-se de rigor e método, sim, mas também de emoção, de ligação ao mundo natural, e de um profundo sentido de missão. A quem começa agora, aconselho que cultivem a observação atenta da natureza e vão para o campo, que se liguem a equipas e redes de investigação, que visitem herbários, jardins botânicos, museus, onde a ciência se cruza com a história e a cultura. Aprendam com os espécimes, com biólogos mais velhos, com o campo; saber ler o campo não é apenas com livros. E, acima de tudo, que escolham temas que os entusiasmem, porque só assim será possível manter o interesse ao longo do tempo. A botânica e a conservação da biodiversidade precisam urgentemente de novas gerações comprometidas, criativas e colaborativas. E, nesse caminho, nunca se esqueçam de que a Ciência também se faz de pessoas.