Miguel Cortes Costa e Carolina Castro Almeida fundaram em 2022 a Lengalenga Filmes e realizaram o seu primeiro documentário a dois, “Silvestres”. À Wilder, contaram como começaram nesta área, como tem sido empreender e o que esperam fazer no futuro.
WILDER: O que fazem na vossa vida profissional?
Carolina Castro Almeida: Neste momento, em conjunto com o Miguel, tenho a Lengalenga Filmes, uma produtora audiovisual ligada à natureza, à ciência e à história. A minha principal responsabilidade é a gestão da empresa, além de coordenar a produção de projetos e o planeamento das filmagens.
Quando estamos em filmagens, dou apoio ao Miguel na imagem e faço a captação de som (ambiente e entrevistas) – apesar de não ter essa formação. O som, tal como a imagem, é fundamental para compor um vídeo, mesmo que institucional, e como somos só nós os dois tivemos que nos desenrascar nesta vertente.
Na pós-produção trato da componente gráfica dos vídeos, o que envolve infografia, ‘motion graphic’ e animações simples para ilustrar contextos históricos ou conteúdos, que poderiam ser muito técnicos e difíceis de compreender (como esquemas ou artigos). Tornam-se assim mais acessíveis e apelativos, para todo o público.
Trabalho noutros projectos, por vezes com o Miguel também, mas que são alheios à Lengalenga. Quase sempre estão ligados à produção – recentemente fui chefe de produção numa série para a RTP, composta por sete episódios ao longo da raia entre Portugal e Espanha (“Portunhol” de Ana Delgado Martins); chefe de produção para um documentário histórico na Madeira (“O Visconde Indomável” de José Abrantes); directora de produção de uma curta-metragem de ficção (“A Fronteira Azul” de Dinis M. Costa) com co-produção entre Portugal, França e Espanha); entre outros. Além da produção, faço vários trabalhos em grafismo e ilustração, principalmente para a produtora Garden Filmes, na criação de animações, posters e genéricos televisivos para a RTP África.
Miguel Cortes Costa: Trabalho em produção audiovisual e o que mais gosto na área é a oportunidade de fazer um pouco de tudo. O que mais tenho feito é imagem: filmo maioritariamente para documentários e institucionais. Associado à minha formação em Biologia, também trabalhei em pesquisa e escrita para alguns projetos nacionais e internacionais. Desde a formação da Lengalenga Filmes tenho-me dedicado também à edição e sonoplastia. Como curiosidade, no último ano dei por mim a fazer coordenação de figurantes e produção de set numa ficção.
W: Como é que começaram a dedicar-se ao cinema?
Carolina Castro Almeida: Aconteceu e foi natural, não foi uma procura minha. A minha formação é em belas artes, concretamente em pintura, e sempre estive ligada às artes plásticas.
Quando acabei a licenciatura não me senti completamente segura e tive necessidade de ter um plano B. Tirei um curso de marketing e produção de eventos que me mostrou que a área de produção é muito mais complexa do que achava – tem uma componente legal e financeira, mas também criativa. Durante o curso fiz um estágio curricular no Festival Monstra e comecei a trabalhar em vários festivais de cinema. A partir daí, dei o passo para outros tipos de produção dentro do cinema em ficção, documentário, séries, publicidade, etc.
Esta área é muito gira! Temos sempre experiências novas, seja em grandes produções, em que o contacto e a gestão de necessidades da equipa técnica e artística têm um ritmo alucinante, seja em projectos mais pequenos nos quais o envolvimento acaba por ser mais familiar.
Miguel Cortes Costa: Muito cedo, percebi que queria trabalhar com vídeo de alguma forma, essa vontade esteve presente na minha vida de forma natural. A minha familia sempre teve a cultura do cinema em casa e tenho um irmão editor (Francisco) e outro argumentista (Dinis): desde pequeno fazia filmes caseiros com eles e durante a licenciatura entretive-me a fazer pequenos clips de natureza.
Quando acabei o curso, pensei em fazer um mestrado em produção de documentários de vida selvagem em Salford, mas faltava-me o dinheiro. Comecei a procurar trabalho em Portugal, e pouco depois comecei a trabalhar na Lx Filmes: este foi o meu primeiro contacto profissional com o cinema, onde rapidamente dei por mim a filmar nos Bijagós (com o Luís Correia), em São Tomé e Príncipe e na Amazónia (c/ a Margarida Cardoso) e mais tarde na Beira Baixa (c/ a Madalena Boto) e Trás-os-Montes (c/ o Ricardo Guerreiro). Percebi que a par com os meus irmãos estes tinham sido os meus professores e estas experiências o meu mestrado. Nunca mais pensei em estudar fora.
W: O que vos despertou o interesse pela natureza e pela ciência?
Carolina Castro Almeida: Nunca tive uma proximidade tão forte com a natureza como tenho hoje, antigamente era mais distante. Mas de alguma forma esta esteve sempre presente, talvez pela minha origem em Trás-os-Montes ou pelas visitas à aldeia do meu pai e ao contacto com o meio rural.
O que foi/é realmente novo para mim é toda a aprendizagem e compreensão que tenho vindo a ter dentro da ciência e da natureza. Estou constantemente a aprender, a questionar, a fazer relações e a chegar a conclusões. Sou uma privilegiada, o meu conhecimento é empírico, aprendo muito no campo com as experiências que os nossos projetos nos trazem e com o conhecimento das pessoas com quem nos cruzamos.
Às vezes acho que sou a mais afortunada de nós os dois, porque muitas vezes o que é conhecimento comum ao Miguel, por ele ser de Biologia, para mim é mais uma curiosidade que até àquele momento me era distante.
Trabalhar em projetos que nos levam para o campo tem sido a melhor forma de me ligar à natureza e compreendê-la. Esses projectos têm também uma componente humana muito forte, é bonito ver como as pessoas e a natureza interagem ao longo do tempo e como esse contacto é benéfico. Ganhei sem dúvida uma grande paixão pela natureza e tenho necessidade de estar rodeada dela.
Miguel Cortes Costa: Aqui entra o meu outro irmão (Guilherme) que trabalha em biologia – a influência que os meus três irmãos mais velhos exerceram em mim é óbvia – e que me contava muitas curiosidades que aprendia no curso, mostrava-me as imagens dos livros e levava-me a ver as estrelas. Apesar de carecer de um contacto com a natureza ou com o meio rural, cresci entre a curiosidade pela biologia e pelo cinema – lembro-me de aos 7 anos receber a minha primeira câmara analógica e gastar rolos inteiros com fotografias de céus vazios, acreditando que estava a apanhar aves em voo.
W: Quais foram os projetos mais marcantes até hoje?
Carolina Castro Almeida: Se olhar para toda a minha vida profissional, tenho vários exemplos que me marcaram (na verdade, todos os projetos são especiais).
Um dos mais fortes, embora não seja a minha área de interesse, foi integrar a produção de uma novela portuguesa em Macau. Fazer a produção e estar em filmagens em Macau foi uma experiência única e sei que nunca terei uma experiência semelhante.
Ligado à natureza, o projeto que mais me marcou foi o primeiro em que tive contacto com a natureza em filmagens – a produção do documentário “Malcata – Conto de uma Serra Solitária”, realizado pelo Miguel Cortes Costa e pelo Ricardo Guerreiro. Adorei estar deslocada numa aldeia com os dois, filmar das sete da manhã até ao pôr do sol, descobrir que planos filmar e como, saber esperar por um animal ou por uma situação, conhecer a história desta região (as formações geológicas, a memória do lince-ibérico na serra, a exploração de minas, as histórias de contrabando), foi um ror de novos conhecimentos.
As “Silvestres” foram também uma aventura entusiasmante que requereu alguma luta – trabalhar num documentário é muito interessante mas também difícil, porque a liberdade criativa é infinita, há demasiados caminhos abertos: podemos adicionar e remover elementos, existem descobertas ao longo do processo, há situações que inicialmente pensamos que são certas e depois abandonamos, enfim… não é óbvio. Mas realizar este projeto com o Miguel foi um ponto alto na minha vida profissional.
Claro que há outros projetos que também me marcaram de formas muito diferentes. Um deles envolveu filmar 40 rubricas sobre o trabalho desenvolvido pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Para mim, uma leiga em biologia, foi um dos trabalhos mais enriquecedores e variados. Foram cerca de 50 dias de filmagens, com vários técnicos e vigilantes da natureza, cada um deles com o seu conhecimento e a sua experiência. Levaram-nos a locais onde tivemos experiências privilegiadas nos parques e reservas naturais do país.
Miguel Cortes Costa: Todos eles marcam de formas muito diferentes. O primeiro trabalho é sempre impactante, como foi fazer imagem para o filme da Margarida Cardoso, “Understory”, com viagens ao Brasil, Reino Unido e São Tomé e Príncipe, aprendi muito com esse projeto e a Amazónia é incontornável: mexe connosco, nunca me senti tão bem recebido e por outro lado tão frágil. Fui só com a Margarida, a estrutura de produção era quase inexistente e a imprevisibilidade assustadora, fizemos coisas bem engraçadas lá, como saltar de uma embarcação para outra no rio Purus, filmar macacos e golfinhos, ser picados centenas de vezes e trabalhar debaixo de chuva tropical.
Mas Portugal também tem o seu peso, nesse sentido guardo dois projectos com muito carinho, que me fizeram viajar com a Carolina pelo país todo e conhecer muitas pessoas de áreas completamente diferentes: o LTER (para a SPECO – Sociedade Portuguesa de Ecologia) e as rubricas do ICNF: filmámos lagostins e longicórnios em estúdio, embarcámos no Douro com vigilantes da Natureza portugueses e espanhóis, ouvimos histórias de lobos, entrámos em grutas para filmar morcegos em Vila Real, mas o que mais nos marcou foi um fim de tarde em Mértola – quando estávamos a filmar coelhos apareceu um lince ibérico, sem coleira, que passou mesmo ao nosso lado enquanto estávamos camuflados, o coração disparou.
Não posso deixar de falar dos dois filmes que realizei: um com o Ricardo Guerreiro (“Malcata – Conto de Uma Serra Solitária”) e outro com a Carolina Castro Almeida (“Silvestres”), diverti-me muito a trabalhar com o Ricardo e com a Carolina e tenho-me surpreendido bastante com o percurso que estes dois filmes têm tido. Filmar “O Visconde Indomável” (realizado pelo Zé Manuel Abrantes e protagonizado pela Inês Herédia) também me marcou bastante, acima de tudo pela filmagem de tantas cenas de época recriadas e com bastantes efeitos especiais – nunca tinha filmado ficção.
E não são só as filmagens que deixam uma marca. A exibição da “A Fronteira Azul” (de Dinis M. Costa) no festival Clermont-Ferrant (França), um filme que nos deu tanto trabalho e envolveu tanto custo emocional – foi um desfecho bastante bonito mostrar o filme numa sala de 1400 pessoas. E quando fui jurado na 30º Edição do CineEco. Nunca pensei ter a regalia e a responsabilidade de avaliar filmes neste festival tão importante na área da Natureza, e tanto os programadores como a organização de Seia acolheram-me muito bem, pude trazer algumas amizades comigo.
É dificil dar uma resposta curta, são tantas as coisas que me marcaram. Quase que de 6 em 6 meses é garantida uma nova experiência que vai ficar para sempre, acho que é mesmo por isso que gosto de estar aqui.
W: Como foi criar a Lengalenga Filmes? E como é trabalhar nesta área?
Carolina Castro Almeida e Miguel Cortes Costa: Entre 2016 e 2020, brincámos um par de vezes com o facto de o nosso apartamento às vezes se parecer mais com uma produtora do que com uma habitação – mas criar uma empresa nunca esteve nos nossos planos. Em 2020, depois da “Malcata – Conto de uma Serra Solitária”, começaram a surgir-nos muitos pedidos dirigidos a nós, relacionados com vídeos para instituições, municípios e grupos de investigação. Geralmente eram trabalhos pequenos mas de chave na mão, que implicavam alguma estrutura, tanto para aceitar despesas como envolver terceiros.
A Lengalenga é então fundada em 2022. Apesar de haver a vontade de abrirmos juntos uma empresa, demorámos 2 anos a tomar a decisão por receio de não ser a melhor ideia ou não estarmos preparados para tal. Mas a partir do momento em que começámos a fazer os primeiros trabalhos, não pararam de surgir novas propostas.
No mesmo período em que decidimos fundar a produtora, realizámos “Silvestres” para a Câmara de Oeiras. Entretanto, temos vindo a crescer e a colaborar cada vez com mais pessoas, que nos trazem o seu cunho próprio na música, nas misturas de áudio, na voz-off, etc. Continuamos a ser apenas os dois em grande parte do processo, mas estamos gratos por trabalharmos com profissionais na pós-produção que partilham os mesmos interesses e gosto pela natureza (muitos dos quais têm formação em Biologia mas seguiram um caminho artístico!).
Trabalhar em Portugal tem o melhor e o pior da área. Trabalhar em Ciências é por si só precário – agravando-se ainda mais se falarmos em comunicação da conservação. Por outro lado, ainda há todo um nicho por desbravar: temos muita sorte, passamos muito tempo no campo, trabalhamos com pessoas talentosas e aprendemos com os especialistas, ao mesmo tempo que contribuimos para difundir todo este conhecimento. A comunidade científica precisa de se atualizar e ser “ouvida” e nesse sentido o vídeo é das formas mais eficientes e bonitas de alcançar esse objetivo.
À medida que vamos filmando mais de Norte a Sul do país, ficamos a conhecer Portugal cada vez melhor e a ver esta teia complexa que vai desde o político ao agricultor, do cientista à orogenia: é como fazer um puzzle que nos permite conhecer melhor como funcionam as coisas. Se mudarmos de país, deixamos o puzzle a meio – adoramos trabalhar em Portugal e não pretendemos sair.
W: O que vos falta fazer que ainda não fizeram?
Carolina Castro Almeida: Muita coisa. Uma delas seria um projeto totalmente autoral, ou seja, um projeto que não venha de um “cliente”. Claro que, tanto na “Malcata” como nas “Silvestres”, o lado autoral sempre existiu, mas quero ter a oportunidade de desenvolver uma ideia do zero. Talvez uma série fosse o mais desafiador. Para isso, gostava de garantir que temos condições para crescer com uma equipa maior, que nos traga novas opiniões e perspetivas. É sempre positivo trabalhar com outras pessoas. Acho que vamos consegui-lo em breve, temos muita vontade.
Um outro exemplo, este a nível mais pessoal, seria fazer uma curta-metragem de animação, ligada também à natureza. Não sou da área de animação, não sei como fazê-la, mas sempre admirei muito a liberdade criativa que se consegue ter. Tenho uma grande paixão por ilustração e a tentação de arriscar numa animação simples; acho que seria também uma boa adição ao portfólio da Lengalenga.
Vamos ver o que nos espera, por agora há muitas ideias no ar.
Miguel Cortes Costa: Pessoalmente, falta-me fazer um filme com um cunho autoral – nem a “Malcata” nem as “Silvestres” o são. Deram-nos sempre liberdade para a criatividade mas não deixam de ser para um cliente, de ter exigências concretas e um peso institucional. Tenho ideias que gostava de realizar e gostava de ter estabilidade suficiente para poder arriscar fazer projetos com total liberdade autoral.
Pensando na Lengalenga, gostava muito que a produtora crescesse um pouco: que pudesse dar a possibilidade a outras pessoas de trabalhar connosco, e eventualmente a capacidade de aceitar as ideias de outros autores para que pudessem realizar os seus projetos aqui. Apesar de adorarmos trabalhar assim como estamos (em parelha e maioritariamente isolados), queremos abrir os horizontes.