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Cria de pernilongo no RIAS. Foto: RIAS

Entrevista: “Num mundo ideal, o trabalho dos centros de recuperação não seria necessário”

30.01.2025

Ricardo Brandão, coordenador do CERVAS, e Maria Casero, médica veterinária do RIAS, conversaram com a Wilder sobre os 15 anos de trabalho na recuperação de animais selvagens a precisar de ajuda e sobre o que podemos fazer para ajudar.

WILDER: Em 15 anos, os dois centros receberam um total de 37.334 animais animais. Têm, ou não, registo de anos com mais ingressos do que o normal?

Ricardo Brandão e Maria Casero: O número de ingressos registou um aumento gradual ao longo dos anos, desde o início da gestão dos centros por parte da associação ALDEIA em 2009, provavelmente devido ao aumento do impacto das acções de divulgação. A própria rede de recolha e encaminhamento de animais por parte das entidades competentes, ainda que com algumas falhas pontuais nalgumas zonas, funciona e tem ganho consistência ao longo dos anos. 

Libertação de águia-pesqueira pelo RIAS. Foto: RIAS

A partir de 2021 verificou-se uma diminuição de ingressos que, no caso do RIAS, poderá justificar-se com a diminuição de ingressos de gaivotas com síndrome parético e no caso do CERVAS com o menor número de ingressos de andorinhões. 

No caso do RIAS houve anos de maior número de ingressos de aves aquáticas devido a surtos de doenças, como por exemplo botulismo, que levaram ao ingresso de várias centenas de aves num curto espaço de tempo, o que teve um impacto grande nas rotinas do centro. Em ambos os centros, é de referir também a situação do cativeiro ilegal pois quando há grandes apreensões por parte das autoridades podemos receber centenas de animais no centro. 

W: Ao longo destes 15 anos, que evolução ou mudança sentiram nos vossos centros?

Ricardo Brandão e Maria Casero: O funcionamento dos centros tem sofrido alterações, principalmente devido ao aumento de ingressos e também em função do tipo de solicitações de diferentes tipos de acções e actividades. Desde a rotina diária aos resultados de cada ano, tudo varia em função de factores como o número de ingressos de animais e respectivas causas, eventos críticos (surtos, alterações bruscas nas condições climatéricas – ex: ondas de calor nas épocas de reprodução), etc. Tudo isto influencia o dia-a-dia, como o tempo necessário para as diferentes tarefas e acções e o tamanho da equipa. 

Ao longo dos anos também tem sido possível aumentar os recursos, humanos e financeiros, o que tem feito uma grande diferença no nosso funcionamento. A existência de financiamentos como o Fundo Ambiental e a integração em projetos como os LIFE tem dado um grande impulso aos centros, permitindo não só melhorar a atenção aos animais em recuperação mas também outras áreas de trabalho, desde a investigação e monitorização à educação ambiental e divulgação da Biodiversidade. 

Treino de coruja-das-torres no CERVAS. Foto: Artur Oliveira

W: Quanto aos animais que foram recebendo, ao longo destes 15 anos, houve mudanças no tipo de ferimentos e causas de ingresso?

Ricardo Brandão e Maria Casero: É de destacar um número crescente de ingressos de animais juvenis, não só devido a quedas do ninho, mas também devido a predação, principalmente por animais domésticos e aqui há que destacar o impacto dos gatos na fauna selvagem, uma situação cada vez mais evidente a nível global.

Outro grupo de fauna específico que tem registado um aumento de ingressos é o dos ouriços-cacheiros (Erinaceus europaeus), muitas vezes com doenças, algumas delas zoonóticas. Em relação a doenças e no caso do RIAS em particular, desde 2020 que se tem dado um destaque particular ao síndrome parético em gaivotas (intoxicação provocada por biotoxinas), diferenciando de outras doenças, como por exemplo, pneumonia, tricomoníase, osteodistrofia, etc.

Em sentido inverso, parece haver um menor número de ingressos devido a tiro e a cativeiro/captura ilegal, o que pode ser um sinal de uma maior sensibilização ambiental por parte da população, nomeadamente em meios rurais, e também um reflexo de uma actuação constante de fiscalização por parte das autoridades.

W: Qual o papel da educação ambiental e do envolvimento das pessoas no vosso trabalho? 

Ricardo Brandão e Maria Casero: Esta área tem sido um dos pilares da actividade dos centros e a de maior crescimento na atividade de ambos pois o número e a variedade de acções tem aumentado, fruto de uma cada vez maior solicitação por parte da sociedade, em particular da comunidade escolar. Se por um lado o tipo de acções mais óbvio é a devolução à natureza de animais recuperados, também tem sido possível capacitar as equipas de ambos os centros com competências pedagógicas que têm permitido diferentes abordagens e uma oferta diversificada, sempre com o objectivo de aproximar as pessoas à natureza, aumentando o conhecimento da população sobre a importância da conservação da biodiversidade. A abordagem tem passado pela presença em escolas (por contacto directo das mesmas, através de protocolos com municípios ou no âmbito de projectos como o LIFE Ilhas Barreira e outros), participação em eventos e recepção de visitas nos espaços de Educação Ambiental de ambos os centros.

W: Como eram estes dois centros há 15 anos, quando começaram, e como mudaram ao longo do tempo?

Ricardo Brandão e Maria Casero: O RIAS era um centro já antigo, com mais de 20 anos, e com a consequente degradação de instalações. Por isso foi necessário fazer um trabalho de recuperação de estruturas, com o apoio do Fundo Ambiental e projectos LIFE em paralelo com o desenvolvimento de todas as áreas de trabalho do centro. No caso do CERVAS as estruturas eram recentes (5 anos) mas pequenas e por isso foi necessário construir ao longo dos anos áreas de trabalho que não existiam. 
Em relação às equipas, o número de técnicos foi aumentando gradualmente, tendo sido duplicado o número de técnicos, que actualmente é de 10 no total dos dois centros, o que tem permitido criar diferentes departamentos. O financiamento tem vindo a aumentar, mas ainda não o suficiente para dar resposta aos ingressos, carga de trabalho e aumento dos custos de uma forma geral (nomeadamente no Algarve). 

Cria de coruja-das-torres no CERVAS. Foto: Artur Oliveira

W: Que conselhos podem dar aos leitores da Wilder sobre como podem ajudar para que haja menos animais com necessidade de recuperação? 

Ricardo Brandão e Maria Casero: A melhor forma de conseguir que haja menos razões para a entrada de animais selvagens em centros de recuperação é diminuir o impacto das actividades humanas. Portanto, todas as nossas acções e esforços que diminuíssem a necessidade de colocação de mais estruturas (estradas, linhas eléctricas, parques eólicos, entre outras) no território seriam benéficas. A uma escala mais local e num contexto urbano, todos os contributos para a diminuição da população de gatos teria um impacto positivo na biodiversidade. 

Num mundo ideal, o trabalho dos centros não seria necessário, pois a maior parte dos animais entram por causas humanas diretas ou indiretas. Há causas muito óbvias como atropelamento e outras que até são crime, como o abate de espécies protegidas a tiro ou com veneno. O importante é ter consciência de que todos nós temos um impacto na natureza e, como tal, temos o poder de o diminuir. São as nossas escolhas e hábitos de consumo que podem ajudar a conservar a natureza ou, pelo contrário, a prejudicá-la. Junto a isto, a educação sobre a conservação da natureza, entender que os animais também habitam o nosso planeta, competem pelo mesmo espaço e recursos disponíveis. Mas é sempre difícil quando os nossos interesses entram em conflito com os deles e normalmente são os animais e a natureza que ficam a perder. 

É sempre importante ter consciência que temos um papel ativo na conservação mas também na destruição da natureza. Simples atos como conduzir devagar nas estradas, passear o cão com trela, de forma a que não possa capturar animais selvagens, impedir a saída dos gatos domésticos à rua, os quais acabam por caçar estes animais, alertar as autoridades para situações de crime ambiental, não alimentar animais selvagens, educar os amigos e família para estas questões.

Camaleão em recuperação no RIAS. Foto: RIAS

Para finalizar, pediria aos leitores que sempre que se encontrem numa situação que envolva animais selvagens, vivos ou mortos, se informem antes de actuar, que liguem às autoridades competentes ou ao centro de recuperação de animais selvagens mais próximo. Desta forma saberemos se é preciso intervir ou não, e quais os cuidados a ter com esse animal. Frequentemente, há pessoas que vêem crias de aves no chão e recolhem-nas, achando que estão sozinhas. Mas muitas das vezes é o processo natural da saída do ninho e os progenitores continuam a alimentar os bebés no chão. Infelizmente acontece mais do que desejável pessoas trazerem o animal quando não é necessário ou até recolherem o animal e tentarem cuidar e tratar em casa, fornecendo água que acaba por ir para os pulmões ou alimentando com comida que não é adequada para esse animal, provocando diarreia e problemas nutricionais.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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