Descoberta a terceira espécie de dragão do lodo para Portugal

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Investigadores portugueses e espanhóis descobriram que no mundo tranquilo e escuro dos sedimentos lodosos das praias do Algarve vive mais uma espécie de dragão do lodo, invertebrado microscópico que atesta a boa qualidade de uma zona costeira. É o Setaphyes algarvensis. Em todo o mundo apenas são conhecidas 270 espécies. Três delas em Portugal. Por enquanto.

Durante cinco dias, Ricardo Neves (investigador convidado do Departamento de Biologia da Universidade de Copenhaga e à data a fazer um pós-doc em Basileia), Fernando Pardos e Nuria Sánchez (ambos da Universidade Complutense de Madrid) estiveram na zona entre-marés, dentro da Ria de Alvor, e em praias de Faro e Albufeira, no Algarve, à procura de dragões do lodo, que também se chamam quinorrincos. De 14 a 18 de Dezembro de 2012, estes investigadores recolheram amostras dos sedimentos, à mão ou com a ajuda de uma pá, para depois analisarem no laboratório.

Imagem de microscopia óptica de um macho da nova espécie Setaphyes algarvensis. Foto: Alberto Gonzales Casarrubios

Dedicam-se a estudar seres microscópicos que medem menos de um milímetro e que vivem nos sedimentos bentónicos (a chamada meiofauna marinha) desde as zonas intertidais (entremarés) até aos 8.000 metros de profundidade.

Estes animais marinhos têm o “corpo dividido em cabeça, pescoço e tronco que, por sua vez, é dividido em 11 segmentos”, descreve Ricardo Neves. “A cabeça, que é retrátil, é caracterizada por um cone bucal e vários estiletes (estruturas cuticulares longas e finas). Cada segmento do tronco é formado por placas cuticulares dispostas dorsal e ventralmente.”

“São um elo importante na cadeia alimentar, pois são presas de animais de maiores dimensões, ajudando assim a sustentar e equilibrar o ecossistema”, explicou à Wilder Ricardo Neves, hoje a estudar o uso de células estaminais no tratamento de várias doenças, enquanto senior scientist numa empresa farmacêutica (na área da histologia, microscopia avançada e tecnologia de imagens 3D).

Seis anos depois de terem sido descobertas as duas primeiras duas espécies para Portugal (em 2016), a Echinoderes lusitanicus e a Echinoderes reicherti, – ambas encontradas na zona entre Faro e Albufeira e a uma profundidade entre os 35 e os 100 metros -, eis que surge a notícia de uma nova espécie para Portugal e para o mundo. É a Setaphyes algarvensis e foi encontrada na zona entre-marés dentro da Ria de Alvor.

Ricardo Neves. Foto: D.R.

A descrição desta nova espécie é, assim, fruto daqueles cinco dias de amostragens nas praias algarvias. O nome, algarvensis, refere-se ao Algarve, a região de Portugal onde a espécie foi encontrada. A espécie acaba de ser descrita num artigo publicado na revista European Journal of Taxonomy. Assim, o género Setaphyes tem hoje sete espécies descritas em todo o mundo.

Nas amostras recolhidas há 10 anos, no âmbito da tese de mestrado de Alberto González-Casarrubios (primeiro autor e aluno da Universidad Complutense de Madrid), foi possível encontrar vários espécimes cujo estudo levou à identificação desta nova espécie.

Alberto González-Casarrubios (à esquerda) e Fernando Pardos (à direita). Foto: D.R.

“A nova espécie distingue-se das suas congéneres pelo arranjo de algumas estruturas cuticulares (chamadas sedas, são curtas e finas) presentes nos vários segmentos do tronco”, explicou Ricardo Neves.

“Esta nova espécie para a Ciência, a terceira a ser descrita apenas na costa algarvia, deixa antever a possibilidade de uma elevada biodiversidade deste grupo específico.”

A importância de estudar e conhecer a fauna de quinorrincos de Portugal é, para Ricardo Neves, fácil de explicar.

“A presença de meiofauna com elevada biodiversidade relaciona-se positivamente com a qualidade dos sedimentos das zonas costeiras que, por sua vez, têm um elevado valor socioeconómico devido às actividades turística e pesqueira aí realizadas. Sendo Portugal um país que depende economicamente – e em grande parte – destas actividades, a descrição e preservação da biodiversidade e a promoção sustentabilidade dos ecossistemas no nosso país é do mais elementar interesse para o desenvolvimento do país e deve fazer parte da estratégia nacional do desenvolvimento económico e social.”

Imagem de microscopia electrónica de varrimento de um macho da nova espécie Setaphyes algarvensis. Foto: Alberto Gonzales Casarrubios

Ainda assim, os dragões do lodo, aqui e no resto do mundo, são animais pouco conhecidos e serão apenas 10 os investigadores em todo o planeta que trabalham activamente para os conhecer melhor. De momento são conhecidas para a Ciência 270 espécies a nível mundial.

“Comparativamente a Espanha, com estudos realizados desde o fim dos anos 1990, o conhecimento sobre a biodiversidade de quinorrincos em Portugal é, ainda hoje, escasso”, constata o investigador que, durante anos, se dedicou ao estudo de vários grupos de animais microscópicos (Kinorhyncha, Cycliophora, Loricifera e Tardigrada), nomeadamente sobre a sua taxonomia, morfologia/ultraestrutura e ecologia. Mais especificamente, o primeiro registo de um dragão de lodo na Península Ibérica é de 1998, quando duas espécies foram descritas para a costa da Cantábria.

“As águas costeiras da Península Ibérica são já bastante conhecidas pela sua elevada biodiversidade”, comentou, em comunicado, Nuria Sánchez, responsável pela descrição de várias espécies de quinorrincos descobertos em Espanha. “Porém, o estudo da sua fauna continua a revelar a presença de novas espécies ainda totalmente desconhecidas para a Ciência.”

Nuria Sánchez. Foto: D.R.

“Com a descoberta e descrição desta terceira espécie de Kinorhyncha encontrada exclusivamente em águas Portuguesas, ampliámos o conhecimento sobre a biodiversidade que caracteriza o nosso país. Também é desta forma que fazemos das linhas costeiras de Portugal um ecossistema mais rico e interessante”, salienta Ricardo Neves.

E este é um trabalho que ainda não terminou. Entre 25 e 27 de Abril, a equipa fez a sua terceira campanha em Portugal. Segundo Ricardo Neves foram recolhidas amostras na Foz do Arelho (Lagoa de Óbidos, Caldas da Rainha), em Peniche (na costa) e na Figueira da Foz (no estuário do Mondego e na costa).

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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