Bencú. Foto: Ricardo Rocha

Bastidores: Patrícia estudou a única espécie de cágado de São Tomé e Príncipe

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Como chegou este cágado às ilhas de São Tomé e Príncipe? Para responder a esta questão, investigadores portugueses foram à procura deste animal, falaram com a população local e fizeram análises genéticas. Patrícia Guedes, uma das autoras do estudo, contou à Wilder como tudo se passou. E o que descobriram.

Chama-se bencú (Pelusios castaneus) e é a única espécie de cágado das ilhas de São Tomé e Príncipe.

Em Julho foi publicado um estudo científico na revista Amphibia-Reptilia que revelou novas informações sobre as origens deste animal naquelas ilhas, o resultado de uma colaboração entre a Fundação Príncipe, o CIBIO – Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos genéticos (Portugal) e a Universidade de Oxford (Reino Unido).

“A ideia para este estudo surgiu na Guiné-Bissau, em 2021, quando falava com um colega sobre a experiência que tinha tido nesse mesmo ano enquanto assistente de investigação na ilha do Príncipe, estudando os impactos das espécies introduzidas na espécie endémica e criticamente ameaçada de tordo”, explicou à Wilder Patrícia Guedes, uma das autoras do artigo.

Bencú. Foto: Ricardo Rocha

“Enquanto conversávamos sobre a biodiversidade das ilhas, contei-lhe que tinha visto um cágado, localmente conhecido como bencú, enquanto lá estive. Ele ficou surpreendido pois, até à data, não havia registos na literatura científica sobre a presença desta espécie no Príncipe. A última check list tinha saído em 2018 e a espécie só aparecia dada em São Tomé. Assim, de uma simples conversa entre colegas e amigos, surgiu a ideia de procurar bencús se regressasse ao país, o que aconteceu logo no ano seguinte.”

Apesar de se encontrar nas ilhas há bastante tempo, até agora não havia nenhum estudo que incluísse amostras da ilha do Príncipe.

Segundo Patrícia Guedes, “este cágado é nativo da África Central e Ocidental, onde habita uma variedade de ambientes de água doce como rios, lagos, charcos temporários, pântanos e zonas alagadas. “É omnívoro, conseguindo adaptar-se bem à disponibilidade de alimentos que existir no seu habitat, podendo alimentar-se de plantas, sementes, frutos, moluscos, crustáceos e até peixes e anfíbios.”

O bencú – que não terá nome comum em Português, sendo “Tartaruga de lama da África Ocidental” o nome mais aproximado, segundo a investigadora – é uma espécie de tamanho médio, podendo as fêmeas maiores chegar aos 28 centímetros e os machos são mais pequenos que as fêmeas.

“Se o ambiente se tornar adverso, este cágado enterra-se na lama ou areia e entra num tipo de dormência, conhecido como estivação, até que as condições melhorem.”

Comparando dados genéticos de cágados do Príncipe e de São Tomé com amostras recolhidas no continente Africano, os investigadores descobriram que os indivíduos de São Tomé e os indivíduos do Príncipe são geneticamente mais próximos de cágados encontrados na Costa do Marfim, República do Congo, Nigéria e Serra Leoa do que entre si. Isto sugere que esta espécie chegou a cada uma das ilhas diretamente a partir do continente e não de uma ilha para a outra.

“Este estudo mostrou que as populações de São Tomé e do Príncipe são distintas, ou seja, não terá sido como com outras espécies do arquipélago em que existe primeiramente uma colonização de uma ilha e depois essa população se expande para a outra, mas sim colonização independente das ilhas.”

Isto foi o que mais surpreendeu os investigadores. “Creio que o mais inesperado foi que duas das amostras recolhidas, uma de São Tomé e outra de Príncipe, tinham uma grande afinidade filogenética com indivíduos da ilha de Guadalupe, nas Caraíbas, o que indica que São Tomé e Príncipe pode ter sido um ponto de passagem entre a população continental e a população das Caraíbas. Como sabemos que cágados e outras tartarugas em geral eram usadas como fonte de alimento nas grandes viagens de barco (o seu metabolismo lento permite-lhes sobreviver durante muito tempo sem comer nem beber), e que houve um grande tráfego marítimo durante o transporte transatlântico de escravos, é possível que a presença do bencú em São Tomé e Príncipe esteja ligado a este passado.”

O estudo explorou também possíveis explicações sobre de que maneira é que os cágados poderão ter chegado às ilhas. Embora a proximidade geográfica das ilhas com os principais rios africanos possa ter facilitado a chegada natural da espécie às ilhas, o transporte feito pelo homem não pode ser excluído como vector para a sua distribuição.

“Sabemos que houve espécies de répteis que chegaram às ilhas de São Tomé e Príncipe através de ‘jangadas de vegetação’ vindas de rios continentais, impulsionadas por descargas de grandes magnitudes formadas durante a época das chuvas”, explicou Patrícia Guedes. “No entanto, também sabemos que na época colonial haviam navios que transportavam cágados e outros tipos de tartarugas como fonte de alimento para as viagens longas. É possível que nestas viagens tenham sido deixados exemplares que depois se instalaram nas ilhas.”

Além disso, “uma amostra de São Tomé e uma amostra do Príncipe foram agrupadas com uma amostra de um indivíduo de Guadeloupe (Caraíbas), o que sugere que os cágados podem ter sido transportados primeiramente para São Tomé e Príncipe e depois para Guadaloupe. Precisamos de fazer estudos mais aprofundados para conseguimos dizer com certeza qual terá sido o mecanismo de chegada destes animais às ilhas”.

Bencú. Foto: Patrícia Guedes

Patrícia Guedes explicou que no total, participaram activamente no projecto seis pessoas, incluindo pessoas que recolheram os dados no terreno, análise genética e escrita do estudo. 

“Este trabalho foi feito em paralelo com outro projecto maior que estávamos a desenvolver em São Tomé e Príncipe no ano passado, ou seja, acabámos por aproveitar a deslocação ao país e os tempos fora do outro projecto para recolher os dados para este estudo. Na ilha do Príncipe estava acompanhada pelo Ricardo Rocha (autor sénior) e tivemos uma ajuda indispensável da Fundação Príncipe para encontrar os exemplares e com toda a logística associada ao trabalho de campo na ilha do Príncipe, assim como outras informações valiosas sobre a presença desta espécie na ilha”, acrescentou a investigadora.

“Na ilha de São Tomé foi um pouco diferente e aí contei mais com a ajuda de pessoas locais, com quem ´metia conversa’ e perguntava sobre o bencú enquanto recolhia dados para o outro projecto. De volta a Portugal, as amostras foram processadas por uma colega do CIBIO – Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos.”

“O trabalho de campo durou cerca de um mês (…) e a parte da análise genética foi bastante rápida, estando os resultados prontos em cerca de um mês. A escrita e submissão demorou um pouco mais, cerca de 4 meses, pois, apesar de todos termos colaborado na escrita, eu estive em trabalho de campo e sem acesso à internet, o que acabou por atrasar um pouco o processo. Desde a recolha dos dados até à publicação demorou quase um ano.”

Apesar das contribuições do estudo, mais pesquisa é necessária para desvendar a origem e o papel desta espécie nas ilhas. A investigadora conclui ainda: “As ilhas de São Tomé e Príncipe são ricas em história natural e cultural. Tendo em vista que o bencú é a única espécie de cágado presente nessas ilhas, seria altamente enriquecedor conduzir estudos que abordassem as interações entre as pessoas e esses animais. As lendas, crenças e diversas formas de utilização associadas a esses seres vivos constituem informações que quando unidas a dados genéticos e ecológicos, têm o potencial de proporcionar uma perspectiva singular. Isso permitirá não só uma compreensão das origens desta espécie, mas também lançará luz sobre a distribuição e o estado de conservação desses animais”.

De momento, esta espécie não está avaliada pela UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza). “Segundo a literatura não é uma espécie considerada ameaçada. No entanto, esta espécie é capturada para consumo, para medicina tradicional e também para fazer artefactos para turistas, pelo que mais estudos são necessários.”

Por agora, Patrícia Guedes trabalha como técnica de campo no projecto TROPIBIO, um projecto focado em ecologia nos PALOP.  “Um dos meus objectivos pessoais será poder voltar a São Tomé e Príncipe para perceber melhor a ecologia e distribuição do bencú, assim como a importância cultural desta espécie para a população local.”

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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