O cavalo da raça Sorraia é uma reminiscência ancestral do cavalo ibérico selvagem das zonas secas e planas do Sul da Península Ibérica. Vários projectos têm procurado restabelecer a raça criticamente ameaçada, face à escassez de indivíduos existentes. É na Herdade do Abegão que está localizada a maior população de selvagens do Alentejo.
“São mesmo selvagens”, afirma Christoph Reimmann, dono da Herdade do Abegão (Baixo Alentejo), assim que avistámos a manada ao longe a pastar por entre a vegetação. São quatro as fêmeas e três os poldros, liderados por um macho, que formam a maior população de Sorraias selvagens do Alentejo. “Nunca tiveram contacto com homens, com veterinários. Ninguém lhes dá comida nem água”, conta-nos Christoph Reimmann que desde 2016 acolheu na sua propriedade de 206 hectares, em regime selvagem, uma pequena manada de Sorraias, em parceria com o projecto sem fins lucrativos “Eco Interventions”, direccionado para a reabilitação de ecossistemas naturais.
Regressámos ao jipe empoeirado e prosseguimos pela estrada de terra batida à procura dos espécimes, que do olhar humano se procuraram afastar. Voltámos a encontrá-los alguns quilómetros depois, refugiados nas estevas e nos sobreiros que pintavam a paisagem. Aproximámo-nos com calma, apreciando os poucos minutos de coexistência proporcionados. O silêncio rapidamente deu lugar ao retumbar dos cascos em liberdade, que se afastaram novamente de nós à procura do próximo refúgio.
Mais comummente conhecidos por “Sorraias” – raça baptizada pelo zoólogo Ruy d ́Andrade na década de 1920, em referência ao local onde os redescobriu – o Vale do Rio Sorraia -, os cavalos Sorraia (ou Zebros, para alguns) são característicos pelas suas zebruras (listas escuras) nos membros, pelagem rato ou baia e extremidades (orelhas, focinho e membros) em tons escuros – indícios de primitividade que já foram encontrados em pinturas rupestres da Era Paleolítica.
Com um efectivo com menos de 200 indivíduos, esta raça autóctone está classificada pela Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) como criticamente ameaçada, embora mantida sob um plano de gestão.
Foi em 2016 que a família Reimmann abriu portas àquela que seria a primeira iniciativa no Baixo Alentejo no âmbito da recuperação de espécies equinas raras selvagens, em parceria com uma equipa formada pela investigadora e especialista equina Dorien Quintino, atual ex-membro do projecto Eco Interventions, e o investigador, da mesma área, Jannis Elsaesser; e com o apoio da propriedade Montado Freixo do Meio (Montemor-o-Novo), que aceitou ceder uma pequena manada de Sorraias selvagens para este novo projecto em desenvolvimento no Baixo Alentejo.
O Montado Freixo do Meio é um dos primeiros e maiores projectos a criar uma área protegida que alberga mais de mil espécies catalogadas, selvagens e domésticas, entre elas os Sorraias. A propriedade detém uma eguada, em permanência, de 8 espécimes selvagens, a maior do país.
O projecto na Herdade do Abegão, que tinha como objetivo inicial a introdução de espécies de grande porte na propriedade e a construção de uma floresta mais “biodiversa”, rapidamente ganhou um novo propósito com a introdução de cinco Sorraias selvagens iniciais, um macho e quatro fêmeas que desde outono de 2017 já aumentaram a sua prole; uma cria em 2023 e duas em 2024. A iniciativa, que visa assegurar a reprodução dos Sorraia selvagens, tem demonstrado ser um sucesso, com duas novas crias a nascerem saudáveis esta primavera, apesar da reduzida dimensão da propriedade.
Para Dorien Quintino, responsável pela dinamização do projecto, tudo começou por uma simples pesquisa na internet sobre espécies de cavalos selvagens em Portugal. “Quando descobri sobre os Sorraias foi o momento em que percebi que havia um cavalo antigo que precisava de ser preservado. Foi aí que o meu interesse por estes animais cresceu. Eles são diferentes de outros cavalos porque não são reconhecidos como selvagens e sim como semi-selvagens em Portugal, ao contrário do Przewalski. A partir daí, saltei mesmo para este assunto, porque quando descobri que ainda existiam cavalos vivos que não eram criados em jardins zoológicos, vivendo em estado selvagem em Portugal, achei muito interessante”, explica.
Na Europa existiram apenas três tipos de cavalos selvagens. O Tarpan (Equus ferus ferus) na Europa Central, o Przewalski (Equus ferus przewalskii), que só podia ser preservado num jardim zoológico, e o Zebro (ou Sorraia) (Equus ferus caballus), que não era reconhecido como um cavalo selvagem que ainda vivia na Europa. Contudo, a relação entre o cavalo Sorraia e as outras raças permanece em grande parte indeterminada, assim como a sua relação com as subespécies cientificamente aceites do cavalo selvagem euro- asiático Przewalski ou o já extinto Tarpan.
Uma mais-valia para a biodiversidade
Ao longo dos últimos séculos, o pastoreio natural por herbívoros selvagens desapareceu de grandes partes da Europa devido ao aumento da pressão humana sobre o ecossistema natural. “O pastoreio natural”, ou “eco-pastoreio”, conta Dorien Quintino, “é considerado um processo ecológico-chave e tem uma influência substancial na composição e dinâmica da paisagem”.
Na Herdade do Abegão, os cavalos Sorraia permitem uma gestão “mais natural” do território, tendo em vista a “preservação” e a “resiliência” dos solos e floresta, a partir do eco-pastoreio. Projectos como este já existem noutros pontos do país, como por exemplo na região do Ave, onde o comportamento natural de pastoreio dos Garranos portugueses, outra espécie equina autóctone em dificuldade, tem contribuído também para a redução do risco de propagação de incêndios, ao controlar as ervas e gramíneas secas durante o período do verão.
“É muito bom ter cavalos, eles fazem caminhos na floresta e comem toda a erva e isto é bom para prevenir incêndios. É tudo mais completo”, explica Christoph.
Segundo o Plano de Gestão dos Sorraias da Herdade do Abegão, elaborado pela equipa da Eco Interventions, a gestão tradicional do montado da Herdade, com a ajuda dos Sorraias, é um exemplo de um sistema extensivo de pastoreio pecuário gerido com base em processos naturais com benefícios para a diversidade de vida selvagem.
Criando um complexo mosaico paisagístico, a gestão da Herdade do Abegão vem contrariar a gestão do território que se estabeleceu gradualmente após a revolução de 1974 e a entrada do país na União Europeia em 1986: a gestão tradicional da terra lentamente perdeu-se, sendo substituída pelo abandono de terras ou pela intensificação da pecuária e da agricultura em locais com boas condições de solo.
“Após o 25 de abril, muitos agricultores recuperaram as suas terras e começaram a dividi-las com cercas, para que não houvessem animais grandes vagueando livremente por essas paisagens”, explica Dorien Quintino. “Uma das coisas que fiz no Abegão e que acho muito especial aqui em Portugal é não ter feito as vedações até ao chão. Todas as cercas estão a 20 cm do solo, para que os animais possam passar por baixo; para que a vida selvagem não seja perturbada, pois [a Herdade] é também um espaço de reprodução para muitas outras espécies neste momento”.
Em risco de desaparecer
Descendente direta dos cavalos trazidos das margens do rio Sorraia, e reminiscência ancestral do cavalo ibérico primitivo, a raça de equídeos autóctone Sorraias é a mais ameaçada em Portugal, a par do garrano, do sangue-puro lusitano e do pónei da Ilha Terceira. Com menos de 200 indivíduos, sendo que entre 60 a 70 são fêmeas, a maioria dos Sorraias encontram-se dispersos em subpopulações no Ribatejo e Alentejo, apesar de já podermos encontrar animais desta raça introduzidos em coudelarias e projectos de conservação ou rebreeding na Alemanha e nos Estados Unidos.
Com um efectivo total de animais descendente de apenas doze animais fundadores (sete éguas e quatro machos) sem qualquer introdução de novos indivíduos, o problema da consanguinidade na variabilidade genética dos animais é “inegável” e pode vir a comprometer a sobrevivência e reprodução desta raça a longo prazo.
“Eu penso que, neste caso, é incrível como com a pouca quantidade de cavalos que ainda existem no país é possível que nós consigamos ter cavalos ferais ou selvagens (é discutível) a reproduzirem-se em estado selvagem”, explica a investigadora.
Estudos realizados pela equipa de Helena Kjöllerstrom, da Universidade A&M do Texas, no sentido de apurar a gravidade do problema, sugerem uma relação “negativa e altamente significativa” entre os valores de consanguinidade dos Sorraia e a sua fertilidade, comparativamente a dados recolhidos de outras subespécies, como o cavalo Przewalski ou o Lusitano. Alertando para a situação precária dos Sorraia, o estudo revela ainda a subida destes valores em 20% ao longo de meio século.
Com a viabilidade reprodutiva dos Sorraia em risco, torna-se necessária a preservação da raça e a implementação de diferentes planos de gestão. “Existem diferentes tipos de programas de criação, mas neste momento penso que restam apenas 126 a 127 cavalos Sorraia no mundo. Por isso é muito importante que estes cavalos estejam em projetos diferentes. A consanguinidade é o maior problema.”, esclarece Dorien Quintino, que acredita que uma maior colaboração entre projectos que visam a reprodução em regime selvagem é essencial, de modo a haver mais cruzamentos e maior variabilidade genética na espécie.
Um novo nome (des)enraizado do passado
Zebro é o nome dado pelos portugueses de antigamente aos cavalos da linhagem dos Sorraia que existiam no seu tempo. O nome, apesar de parecer derivado do das zebras é, pelo contrário, a sua origem, já que os portugueses relacionaram as zebruras da Zebra com os cavalos Sorraia que conheciam. “A domesticação dos cavalos e a criação de raças começa depois de os portugueses descobrirem as zebras em África”, revela-nos Dorien Quintino.
Defensora do nome “zebro” para o cavalo selvagem de Portugal, Dorien Quintino crê que os cavalos Sorraia enquanto raça dizem mais dos indivíduos domesticados do que sobre a população selvagem na sua totalidade. “Seria muito bom se considerássemos que temos a raça Sorraia, mas também os cavalos zebros, porque o zebro é antecessor selvagem do Sorraia.”
Segundo a especialista, a linha entre cavalo selvagem e raça torna-se muito ténue, e é por isso que os Sorraias são reconhecidos apenas como semi-selvagens.