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Serra da Peneda, para memória futura

30.08.2016

Serra da Peneda. Conheço-a melhor do que o bairro da cidade onde sempre vivi. Com a serra do Gerês, constitui a espinha dorsal do nosso único parque nacional. Nos dias mais quentes deste verão, dez anos após ter sido devastada por um grande incêndio, voltou a ser notícia, pelas mesmas razões. Ver citados na comunicação social os nomes de paragens que por norma só leio nas minhas notas de campo, foi por isso doloroso. Em crónicas anteriores referi o interesse acrescido de nos focarmos numa determinada região, de a conhecer em profundidade. O problema é quando um desastre como este acontece no nosso destino de eleição, «dentro de portas».

Desta vez o fogo foi ainda mais cruel. Primeiro deflagrou no centro da serra, numa área de pinhal defronte do santuário da Peneda, o coberto vegetal ideal para as chamas causarem estragos quando não são rapidamente extintas. Não foram, acabando por chegar às cumeadas da serra tornando o seu combate impossível. Nos dias que se seguiram o fogo moeu a Peneda como quis, violando corgas com pequenos mas muito importantes carvalhais, já fragmentados e diminuídos por chamas mais antigas.

 

 

Entretanto, a sudoeste, uma segunda frente atinge o Mezio queimando arvoredo que tinha escapado ao grande fogo de 2006. Foi-se expandindo até invadir (mais uma vez) a Mata do Ramiscal, um dos três redutos naturais mais importantes do Parque Nacional. Quase toda a encosta da margem esquerda foi atingida. O fogo chegou ao rio por meandros supostamente intransponíveis, um sinal evidente da fragilidade em que se encontra a Mata. Confrontadas com chamas destruidoras, tanto é o mato que as rodeia, mais árvores de grande porte sucumbiram. No terreno estão recriadas há muito as mesmas condições que se reúnem para gerar fogo nas lareiras das nossas aldeias. O lume acende-se com rama de giesta ou de carqueja. Uma vez bem pegado, alimenta-se com uma boa acha de carvalho, de azinho ou de sobreiro. É o que acontece nos núcleos sobreviventes de grandes árvores dispersas, imersas numa imensidão de matos cerrados. As queimadas são desde tempos recuados as grandes responsáveis por esta morte lenta e silenciosa que igualmente destrói a importantíssima manta morta que se vai acumulando no solo dos melhores bosques. Para breve antevejo a penosa tarefa de ir à procura dos azevinhos e carvalhos mais antigos, aos quais atribuí nomes próprios motivado pela espectacularidade do seu porte, temendo que alguns deles possam ter sido atingidos pelo fogo. O ambiente que predomina é de degradação, abandono e desolação. Inaceitável na «melhor» natureza de Portugal.

Já com a serra severamente castigada, um terceiro incêndio nos seus limites a nascente, nas proximidades de Castro Laboreiro, fechou o cerco.

Graças ao Homem, tudo ficou mais difícil para a fauna selvagem que reside na Peneda. Os animais, muitos deles com as crias do ano, vêem-se obrigados a empreender movimentações forçadas, geradoras de riscos e de conflitos acrescidos, procurando refúgios alternativos e um alimento que por estes dias se revela mais escasso. Imagino as dificuldades por que estarão a passar as duas ou três famílias de lobos e os corços que aqui vivem.

 

Carvalho-alvarinho do Ramiscal
Carvalho-alvarinho do Ramiscal

 

Em tempos recuados, por causas mais naturais, perderam-se várias espécies que dependiam de um clima frio e com mais neve. Agora, com a degradação profunda que o fogo vem promovendo nestas serras, são as aves para as quais o território da Peneda-Gerês é o limite sul da sua área de ocorrência, que vão desaparecendo. As espécies, vegetais e animais, mais exigentes, mais especialistas, que em muitos casos definem o nível de interesse natural de um determinado território, são as principais vítimas. Algumas das que se adaptam a «habitats» mais pobres e uniformizados, transformam-se em pragas.

O solo, desnudado, ficará à mercê das próximas chuvas sendo de prever estragos severos nas encostas montanhosas de declive acentuado. A serra reterá menos água, também necessária para alimentar turfeiras e lameiros de altitude, o que por sua vez afectará vegetação lacustre, importante sob o ponto de vista da conservação e que só sobrevive nestas pequenas zonas húmidas, escassas em ambientes serranos.

Se o Homem, causador de tudo isto, não der uma ajuda, invertendo de uma forma profunda e duradoura, o caminho de destruição que vem trilhando, será confrontado com o agravamento das consequências da conduta errada que iniciou há séculos. A recuperação do coberto vegetal autóctone, prevendo uma reflorestação criteriosa com espécies nativas e medidas que impeçam que o fogo continue a fazer parte do quotidiano dos nossos montes, é inadiável. As alterações climáticas não ajudarão Portugal a lidar com situações que em dias extremos de calor e de vento forte e seco, poderão tornar-se ainda mais incontroláveis do que as verificadas este ano.

Contrariando o espírito positivo que predomina na WILDER, esta é uma crónica triste. Ainda mais triste é a percepção que o autor tem, enquanto a escreve, da irrelevância de uma crónica triste. Mas, face à realidade, sem esta, as outras crónicas não fazem sentido. E um atentado ambiental tão grave, como o que foi (mais uma vez) consentido no coração daquele que deveria ser o tesouro mais bem guardado (atendendo ao estatuto máximo de protecção da natureza que lhe foi atribuído) não pode ser ignorado, nem deve ser esquecido. O inconformismo fica de novo registado. Para memória futura.

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