Gosto de voltar aos mesmos locais, quando estes proporcionam boas observações de animais selvagens. Um deles, a que retorno todos os anos, é um pequeno regato originado por um encaminhamento de águas muito antigo, feito pelos agricultores num monte da Terra Quente transmontana.
O início da Primavera é a melhor altura. Nos primeiros dias quentes do ano, em que a água ainda corre, répteis e anfíbios, alguns pequenos mamíferos e muitas mais aves, concentram-se neste pequeno paraíso, onde a frescura da sombra proporcionada pela vegetação que a água suporta, contrasta com a secura das encostas de olivais e de amendoais e de grandes extensões de terreno coberto por rosmaninho, que nesta altura exibe a sua flor de cor roxa mas que em breve secará, quando o calor que dá nome à região se tornar abrasador. Será então chegada a época em que o agradável aroma desta planta se sentirá um pouco por todo o campo.
O melhor local é onde a linha de água cruza um caminho onde, de vez em quando, circulam carroças puxadas por mulas e, mais frequentemente, os tratores que as foram substituindo. Aqui, o regato alarga-se, criando uma poça de água constantemente renovada, enquanto a nascente na “pedra que verte água” não secar.
Neste troço aberto, as aves têm mais espaço e sentem-se mais seguras. Fui habituando-as à minha presença, pelo que aguardo na borda do caminho, sem esconderijo, apenas dissimulado pelo silvado que o margina, a escassos cinco metros do “palco”. Se os bichos selvagens têm mil e uma razões para se mostrarem cautelosos e desconfiados perante a presença do homem, também são curiosos e algumas vezes dão a entender que confiam, aproximando-se, não ao ponto de se deixarem tocar, mas de se verem bem e de se conseguirem fotografar.
Pouco minutos depois de me instalar, chegam os pintarroxos, quase sempre os primeiros. Sós, aos pares ou em pequenos grupos, também acompanhados pelos filhotes do ano, são os que mais se banham, mergulhando a cabeça, chapinhando na água com batimentos de asa rápidos e vigorosos. Sobem a um poleiro, sacodem-se, ajeitam as penas e quando estão prontos para partir, descem e… voltam à água!
Os tentilhões também gostam de se banhar. Já os pintassilgos são rápidos. Bebem, tocam a água e partem logo a seguir. Num poste próximo, um dos que suporta o cabo que transporta energia a um ponto isolado do monte, pousa um cuco. Começa a cantar mas não por muito tempo. Um cartaxo-comum, bem mais pequeno que o intruso recém-chegado, pica sobre ele, obrigando-o a deixar o território que é seu todo o ano. Ecoa então um piar espaçado e algo melancólico, vindo do céu. São duas grandes águias-cobreiras que, com voos cruzados e lentos, atravessam o território. Bem mais perto, uma toutinegra-de-cabeça-preta ronda o perímetro, incessantemente, mas só de longe a longe se aproxima da água, neste troço a descoberto.
Na poça, a passagem de uma cobra-de-água-de-colar gera algum nervosismo. Também passageiro. Chega então um chamariz acompanhado por um juvenil que parece não conhecer ainda estas andanças. O progenitor mete-se na água fazendo o mesmo que os exuberantes pintarroxos. Depois volta para a bordadura da poça onde ficou o imaturo, que imediatamente se mete na água imitando o progenitor. A princípio desajeitado, depressa manifesta confiança. E prazer. Os verdilhões também aproveitam as boas condições que a “piscina” faculta mas só depois de saciar a sede. Lá mais para o final da estação de banhos, pouco antes da poça secar, as rolas-bravas, sempre muito desconfiadas, não resistirão igualmente ao “cantar” com que o pequeno fio de água se faz ouvir ao fluir por entre as pequenas pedras que tem de contornar no seu percurso.
Este ano, num dos dias em que seguia o intermitente vaivém das aves, ouvi o ruído de algo a mergulhar no interior do canal imediatamente a montante do caminho. Abri uma pequena clareira no silvado de uma das margens e aguardei, até descobrir a origem do rebuliço. Enquanto a progenitora com grande estardalhaço corria o regato, quase sempre submersa, dois pequenos ratos-de-água catavam-se mutuamente numa minúscula enseada dentro do canal. Uma rã-de-focinho-pontiagudo assistia impávida.
Mas o mais inesperado veio depois. Algum tempo após ter voltado ao meu poiso na borda do trilho, vi algo sair do túnel de vegetação onde o regato se enfia ao deixar a “piscina”. O que quer que seja, aborda a poça, hesita, volta para trás e desaparece. Apesar da enorme rapidez com que tudo se passa, deu para ver que se tratava de um mustelídeo. De dia, a cinco metros de distância, é sempre um acontecimento. Mas quando ainda processava a observação, ei-lo de novo na boca do túnel, de pé, fixando-me por uns instantes! É uma fuinha!
Avança, imobiliza-se a meio do caminho, e, agora decidida, atravessa o que falta do percurso em espaço aberto para entrar de novo no regato, no lado em que eu me encontro. Não volto a vê-la e tenho a certeza que tão cedo tão interessante observação não se repetirá, como verifiquei nos dias que se seguiram.
Mas para o ano voltarei. Agora motivado também pela expectativa de avistar algo mais que o habitual frenesim das aves, nesta pequena mancha de água, estrategicamente situada.