Neste início da Primavera, Miguel Dantas da Gama faz a sua primeira saída de campo do ano para seguir a águia-real no Parque Nacional da Peneda-Gerês e para tentar reencontrar o lobo-ibérico.
Nunca parto para o monte sem um plano pré-traçado e objetivos bem definidos. Para um dia solarengo e frio deste início da Primavera, estabeleci duas atividades. Até meio da tarde algo que me dá especial prazer. É a primeira saída de campo deste ano dedicada ao seguimento da águia-real no Parque Nacional, trabalho que foi interrompido nos últimos tempos devido à pandemia, mas também a um novo projeto editorial sobre a Peneda-Gerês que muito em breve verá a luz do dia. O resto da jornada será preenchido apenas com diversão. Uma espera ao lobo manter-me-á algumas horas diante de um cenário escolhido, na tentativa de o reencontrar.
Primeiras horas do dia, o sol ainda não despontou no horizonte. Na subida da pista florestal que me permitirá aceder ao início da caminhada de aproximação às águias, um corço escapa-se rapidamente da berma, embrenhando-se num pinhal onde, curioso, se detém pouco depois. A subida prossegue e já a chegar ao local de paragem, um primeiro contacto. Uma águia-real sub-adulta entretém-se. Deixa cair algo das garras para logo a seguir se precipitar a apanhar o que parece ser um pequeno pau ou mesmo uma pedra. Nas duas tentativas a que assisto é bem sucedida numa delas. Para me aproximar da escarpa onde as águias poderão estar a nidificar, tenho que iniciar o percurso precisamente onde ela voa. Acaba por afastar-se deixando-me a pensar o que o seu comportamento parece querer apontar. Nesta altura do ano, uma das águias está no ninho, chocando a postura, a outra tenta, agora mais só, obter alimento para ambas.
Cartaxos, ferreirinhas e cotovias são companhias constantes, narcisus e crocus, as flores que já brotaram. Para ver o ninho, mesmo à distância, há que descer uma encosta algo escarpada. Em parte do percurso tenho que contrariar a agressividade de um giestal denso. Finalmente, de um penhasco saliente, alcanço o ninho com a ajuda do binóculo. Tem muita lenha, alguns ramos secos no topo, está desocupado. As próximas horas vou passa-las mais dissimulado, tentando confirmar possíveis movimentações. Ao fim da primeira hora surge a mesma águia. Um segmento branco-vivo na cauda é bem visível. Alguma agitação é rapidamente compreendida. Um pequeno falconídeo não gostou da sua presença e simula um ataque. A águia emite um só pio, mostra-lhe as garras, o suficiente para por fim ao episódio. Plana agora na minha direção, voando da forma imponente que lhe é própria. Uma nova hora passa e eis que surge de novo, num voo intempestivo, picando logo a seguir para trás da escarpa que preenche o cenário para onde estou orientado, enorme pano de fundo sobre o qual vários carvalhos se impõem já com a nova folhagem, em tons diversos.
Na hora que se segue, tento avistar cabras-montês numa encosta distante que há mais de vinte anos se tornou delas. Não foi preciso muito tempo para encontrar quatro, deambulando sobre grandes penhascos.
Sem mais sinais das águias, trepo a encosta para regressar à pista florestal. Já quase nela afugento uma raposa.
Meia hora depois estou no local de espera do outro superpredador. Por aqui os lobos passam amiúde deixando sinais que o confirmam. O campo de visão é amplo. Quarenta e cinco minutos passaram quando algo se move por entre o mato na crista da encosta. A distância é relativamente grande e num primeiro momento penso no lobo. Mas assim que o animal sai de trás de umas urzes mais altas, a dúvida desfaz-se. É mais uma raposa.
Duas horas depois, mesmo sem vento, mas na sombra e com o sol a aproximar-se da linha do horizonte e nuvens dispersas a tirar-lhe força, faz um frio dos diabos. Quero ver lobos, mas com boa luz. Conformado – e gelado – desço até ao Defender. Pensar que se vê lobo na primeira tentativa ao fim de muito tempo, é pedir muito.
Finalmente arranco. Nem quinhentos metros avancei quando deparo com dois exemplares adultos, já a desviarem-se da pista florestal! Vinham na minha direção e passariam pelo local de espera se mais uns minutos aí tivesse permanecido. Nem desligo o motor, sigo já os lobos através da camara de filmar. Vão num trote ligeiro interrompido por várias paragens em que se viram para mim, ora um, ora outro, ora os dois. Decididos, descontraídos, muito serenos, atingem a crista. Um senta-se. Agora não se fixam apenas em mim. Desfrutam da paisagem grandiosa que nos rodeia aos três.
Contra a linha do horizonte e a luz do sol que por trás da encosta se põe, as suas silhuetas criam um ambiente que toca o coração de quem vibra com a natureza selvagem. Cumprido o ritual, desaparecem pouco depois pela vertente oculta. Durante todo o dia, não me cruzei com ninguém, apenas o ruído de aviões a grande altitude quebraram os sons próprios da montanha. Na companhia dos seus dois super-predadores, hoje voltou a ser um dia grande na Peneda-Gerês.