lobo ibérico
Foto: Joana Bourgard

Dias com vida selvagem: O lobo, o urso, nós, a casa de todos, um destino comum

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O lobo, animal selvagem, exige espaço. Espaço que não é apenas território. Quando o homem não lho concede, não vive na sua plenitude. Vai sobrevivendo graças à sua inteligência, sabedoria, capacidade de adaptação. 

Na WILDER, volto ao lobo. Não por ser tratar de um animal fascinante mas por ser um bioindicador importante do estado em que se encontram os diversos ecossistemas em que ocorre, considerando o lugar que ocupa na cadeia alimentar. É uma espécie que emociona, que gera paixões exacerbadas mas também ódios violentos. E muitas contradições. Animal selvagem, exige espaço. Espaço que não é apenas território. Quando o homem não lho concede, não vive na sua plenitude. Vai sobrevivendo graças à sua inteligência, sabedoria, capacidade de adaptação. 

O lobo vem a propósito devido a um estudo recente – de que a WILDER deu notícia – sobre a recetividade de vários setores da sociedade a uma eventual presença do urso-pardo em Portugal. Nele se dá conta da existência de uma maioria favorável ao seu regresso. Tal como o lobo, também o plantígrado precisa de espaço. Um território mais ou menos extenso, com um habitat favorável, onde ele se possa movimentar, reproduzir e alimentar e que garanta a mitigação de conflitos com o homem. 

Os ursos que poderiam – ou poderão – de uma forma marginal, regressar a solo português – como em crónica anterior já defendi – provêm de uma região que à partida já garantia parte destes requisitos. Daí que a espécie tenha sobrevivido na cordilheira cantábrica. Mesmo assim, para que a evolução fosse tão favorável, investiu-se muito nas últimas décadas. Recuperou-se habitat, com incidência numa maior disponibilidade de alimento, interditou-se a exploração de recursos e mesmo o acesso humano a determinadas áreas vitais para a recuperação de populações e provou-se o quanto as comunidades rurais poderiam beneficiar com a sua presença, se devidamente conciliados os interesses de ambos. 

Voltemos ao estudo. Se cientes do forte investimento que se revela necessário, para que algumas franjas fronteiriças do norte de Portugal possam fazer parte de uma área de distribuição do urso-pardo no noroeste da península ibérica, será que os entrevistados foram confrontados com a imposição de restrições, de limitações, de mudanças de atitudes e de práticas que o regresso desta espécie exige, num território maioritariamente delapidado e anarquicamente ocupado como é o nosso?

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Principalmente num momento de confronto eleitoral, revela-se inadiável debater questões importantes, desmistificando certas ideias que nos fazem crer que, com transições energéticas e mudanças comportamentais tudo fica resolvido, ou pelo menos bem encaminhado para evitarmos o abismo, cientificamente comprovado, para que nos encaminhamos. 

A nossa casa comum, os seus recursos, não crescem. 

Não basta trocarmos a queima de combustíveis fósseis por energias “limpas”. Outras mudanças, são mais discutíveis. A transição do plástico para o papel não é pacífica. E se a cito é porque o plástico é um bom exemplo do que está em causa, de aonde pretendo chegar. O problema não é usá-lo, mas sim como o fazemos, como nos livramos dele quando não mais nos serve. E um consumo exponencial de papel traz outros custos que não podemos ignorar. Esta ideia é extrapolável a muitas outras áreas económicas e de consumo.

A questão fundamental, de difícil resolução há que reconhecê-lo, é o egocentrismo com que continuamos a encarar o mundo. O homem transformou-se numa espécie dominadora, incontrolável. Egoístas e insaciáveis, assentamos num modelo económico que se diz só sobreviver, se assentar em crescimento. Crescimento de consumo e de população. População que adquiriu uma dimensão tal que, aliada a enormes e injustos desequilíbrios sociais e económicos a nível mundial, levou-nos a um convívio cada vez mais apartado dos ritmos naturais que as demais espécies exigem, que o planeta globalmente impõe. Para atender à dimensão crescente da população humana e à forma como nos distribuímos pelo planeta, exploramos recursos desmesuradamente, produzimos bens, intensa e agressivamente, recorrendo a meios que, quando se querem controlar, fazem surgir reações que a estas mudanças se opõem com veemência. A tentativa de a União Europeia controlar o uso de certos adubos e pesticidas e as razões que os agricultores invocaram para a fazer recuar – não é na UE que mais se polui e estas medidas iriam agravar desequilíbrios concorrenciais – são um exemplo tão atual como paradigmático.

Sem ter que evocar os negacionistas que oportunisticamente ignoram a realidade, há quem desvalorize os avassaladores epifenómenos naturais com que nos confrontamos. Mas o que não é possível negar é o ritmo anormal do degelo global, o verdadeiro continente de plástico que flutua nos mares. O recente estudo que atesta a presença de microplásticos em quase tudo o que consumimos – que a WILDER noticiou – entre tantas outras conclusões no mesmo sentido, não bastam para que globalmente nos entendamos. A última COP no Dubai foi esclarecedora. E este é o grande problema. Se não nos entendemos, como os crescentes conflitos armados e as cruéis desigualdades entre nações fazem crer, como podemos concentrar esforços e lutar pela salvaguarda desta casa comum? E que importa os nórdicos viverem em cidades sem queimas fósseis, se noutras paragens se aceleram catástrofes ambientais, para que tal “limpeza”, localmente, seja possível?

Voltar a ter ursos-pardos em Portugal implica muito mais do que aliviarmos a alma com mudanças que nalguns casos só servem para adiar o fim. Dizer que queremos o regresso dos ursos sem abdicarmos do padrão de vida que levamos, do conceito de sociedade que defendemos, pressupõe a crença em mundos paralelos. Neste contexto, fica-nos mal vir para a rua gritar que não existe um planeta B.


Miguel Dantas da Gama é preservacionista e membro do Conselho Estratégico do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Leia aqui todas as crónicas deste autor.

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