O biólogo Paulo Catry mergulhou nas águas límpidas da Deserta, Madeira, e conta o que viu e o deslumbrou.
Desertas, julho 2024
A limpidez das águas em redor da Madeira é lendária. Ao que parece, Jacques Cousteau terá dito que de todos os locais do mundo onde mergulhou, foi no Porto Santo que testemunhou a transparência máxima. A Deserta não fica atrás.
Águas translúcidas são, em geral, indicadoras de falta de nutrientes. A vida subaquática destas ilhas não é de exuberante quantidade, mas encanta. As algas mais vistosas e desenvolvidas são umas asparagopsis, vermelhas, exóticas, que crescem muito espaçadas, em belos tufos plumosos e ondulantes. Aqui e ali há povoamentos mais extensos de algas-cauda-de-pavão Padina, copa redonda e rasteira. As seifias arrancam-nas à dentada, procurando expor invertebrados ocultos.
Blocos enormes no fundo, arredondados, polidos por tempestades dantescas, só elas os poderiam mover e trabalhar; se peixes por aqui tivessem estado, pereceriam certamente nesses dias de tormenta. Não é por acaso que no inverno muitos animais marinhos migram para locais mais profundos, abrigados das intempéries da superfície.
Quando se fala de peixes, de sargos, por exemplo, pensa-se logo na grelha, jantares ao ar livre, horizonte vermelho, depois tinto, tempo festivo. Só que aqui o encanto não é gustativo, é visual e existencial, são animais selvagens, senhor. Bodiões, peixes-verdes, lagartos-do-rolo, rocazes, garoupas, porquinhos, encharéus, pargos, salmonetes, peixes-cão, peixes-porco, velhas, cabozes… um polvo. Umas 30 ou 40 bicudas (barracudas*) deslocam-se em formação. Temíveis segundo certas estórias, aqui fazem-se temerosas, não permitem grande aproximação.
Um cardume compacto de besugos move-se letárgico junto ao fundo, aperta-se para passar entre dois grandes rochedos, ou abre uma brecha no seu corpo uno ao contornar um bloco mais pequeno. Já as bogas não apresentam a mesma coesão: nadam ainda assim organizadas, mas bem espaçadas. Finalmente, um cardume de castanhetas-baias; ainda que se mantenham agregadas, cada uma faz como quer na caça ao plâncton, movem-se com vontade própria, não há sincronia nem acordo na direção.
Os meros, embora sempre recatados, logo desde muito pequenos têm a particularidade única de nos olharem mesmo de frente; revelam coragem talvez, devo parecer-lhes monstruoso. Os adultos são mais discretos.
Atraem-me os facaios, pelo nome musical e pelos flancos de prata. Barbatana caudal bifurcada e pontas negras. Dão ares de peixes do alto, mas não hesitam em chegar-se à rocha e à espuma da levadia.
Enquanto nado, vai-se juntando um grupo de peixes curiosos que me persegue de muito próximo: são preguiçosas, sobretudo, com sargos e dobradas à mistura, um charuteiro na retaguarda. Estranho cortejo este que juntos compomos.
Também me agrada entrar no mar de noite. É a hora das moreias. A luz da lanterna mal acorda peixes estremunhados, os bodiões dormem deitados de lado no fundo. Um cardume de guelros brilha como uma via láctea na água preta. Há toda uma série de animais, ocultos de dia, que saíram dos seus esconderijos e são agora plenamente visíveis. Ouriços e vinagreiras malhadas. Afonsinhos por todo o lado, pequenos peixes muito vermelhos (rosas quando iluminados pela minha lanterna fraca), de grandes olhos pretos. No escuro, vou sempre a medo que me apareça algum dos lobos marinhos que aqui se veem durante o dia.
Ao sol, as minhas preferidas são as salemas, listadas, cintilam em sincronia quando viram e reviram sob o efeito do vaivém das ondas. Os cardumes segregam-se por classes de tamanho, pequenas, médias, grandes, todas brilhantes. Pastam as algas curtas que medram nas rochas. Por vezes o cardume passa perto do ninho de uma pequena castanheta-preta (e azul) que não hesita e carrega, espalhando oiro na luz, mas logo o cardume de salemas se recompõe.
Estamos numa Reserva Natural bem guardada. Porém, muitas destas observações feitas em snorkelling estão disponíveis ao longo de qualquer litoral nacional, embora em geral sem o peixe mais graúdo. Mas mesmo que continuemos a destruir, mesmo nos sítios mais sobrepescados e degradados, há e haverá sempre um motivo de maravilhamento, cardumes de prata, rascassos, muges, salemas doiradas.
A curiosidade das preguiçosas pelos mergulhadores é momentânea, especulo. Em breve, a saga evolutiva humana e a nossa explosão demográfica e tecnológica, qual fugaz fagulha, não deixará mais que um sobressalto na imensidão da epopeia piscícola. Ou talvez não. O mergulho não esclarece incertezas, antes permite relativizá-las, ou temporariamente esquecê-las.
Saio da água arrastando-me pelos calhaus polidos, cambaleando por entre vagas amigáveis, lapas e caramujos, trôpego na espuma. De passagem assusto caranguejos e pasmo de reencontrar o sol, as ilhas, falésias pretas, cinzentas, vermelhas, sons de garajaus. Ainda levemente ofegante, a boca vem salgada do mar.
GLOSSÁRIO
* Uso aqui nomes madeirenses dos peixes, que diferem consideravelmente dos do Continente ou dos Açores, embora alguns sejam reconhecíveis. Os bodiões Sparisoma cretense, por exemplo, são conhecidos por “vejas” nos Açores e, por falta de nome vernáculo, no Continente há quem lhes chame pelo nome técnico de peixe-papagaio (o termo “bodiões” no continente refere-se a peixes de outra família, os labrídeos).
Lagarto-do-rolo Synodus synodus, Guelro Atherina presbyter, Rocaz Scorpaena maderensis, Mero Epinephelus marginatus, Garoupa Serranus atricauda, Afonsinho Apogon imberbis, Encharéu Pseudocaranx dentex, Charuteiro Seriola rivoliana, Facaio Trachinotus ovatus, Boga Boops boops, Sargo Diplodus sargus, Seifia Diplodus vulgaris, Dobrada Oblada melanura, Besugo Pagellus acarne, Salema Sarpa salpa, Pargo Pagrus pagrus, Salmonete Mullus surmuletus, Preguiçosa Kyphosus sectator, Castanheta-preta Abudefduf luridus, Castanheta-baia Chromis limbata, Peixe-cão Bodianus scrofa, Truta-verde Centrolabrus truta, Peixe-verde Thalassoma pavo, Peixe-papagaio Xyrichtys novacula, Bodião Sparisoma cretense, Caboz Parablennius parvicornus, Velha Ophioblennius atlanticus, Bicuda Sphyraena viridensis, Peixe-porco Balistes capricus, Porquinho Canthigaster capistrata.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.