Nesta sua crónica, Paulo Catry, investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos um vislumbre do início do Outono na Lagoa de Albufeira, em Sesimbra.
Lagoa de Albufeira, 26 Setembro 2021.
Manhã sem vento. Cantos de escrevedeiras e de rouxinóis-bravos. Os salgueiros ainda não se despiram, mas muitas aves estão de abalada: os últimos rouxinóis-dos-caniços (juvenis, de plumagem brilhante e sedosa), andorinhas-das-chaminés e das-barreiras; ainda um ou outro trevo em flor – final de época; com a chuva recente, o verde rasteiro está a recompor-se – princípio de outra.
Outono com restos de Verão, e é engraçado ver que já há quem pense noutras núpcias, do ano que virá. Algumas frisadas (Mareca strepera) andavam hoje atarefadas nos planos de água, por entre caniçais. Um grupo de 3 ou 4 machos perseguia uma fêmea solitária que pretendia protestar o excesso de atenção. Já não vão adiantados estes, que o que mais se via era casais formados, dormindo lado a lado, convictos da escolha feita.
A certa altura os machos livres abordaram uma fêmea já emparelhada, e foi ver os membros do casal muito unidos, nadando de flanco colado, distribuindo ameaças à direita e à esquerda, bicos abertos e ruidosos. Perante a solidez da parceria, os solteirões não insistiram.
Havia outras espécies de patos na lagoa, ainda em muda, roupa velha, ciclo anual mais atrasado. As frisadas anteciparam-se, mesmo se nem são aves precoces na reprodução; observam-se com ninhadas em Maio e Junho. Preparam-se com antecedência, como se vê.
As frisadas são aqueles patos discretos em que “os machos parecem fêmeas”, na explicação descuidada de quem não vê o fino rendilhado preto e branco no peito masculino, as longas penas no dorso, o marron da asa. Hoje maravilhei-me com o trejeito estereotipado com que acenam às fêmeas, a cabeça e o pescoço num movimento redondo de fugidia elegância. Discretas e elegantes, finas.
Há 30 anos atrás, em 1991 e 1992, o Helder Costa e eu contámos as aves da Lagoa de Albufeira quinzenalmente, durante 24 meses. Frisadas, vimos 3 indivíduos juntos, numa única e rara ocasião*. Vinte anos antes disso, em 1969-72, Rewa Ray nunca observou a espécie, apesar das visitas regulares ao local**.
Esta manhã as frisadas eram os patos mais abundantes na Lagoa, e agora são ali vulgares o ano todo. Sem dar nas vistas (ao seu estilo), em poucas décadas as frisadas passaram de muito escassas a amplamente distribuídas pelo sul de Portugal. Aliás, têm aumentado na sua vasta área de nidificação, que vai do Alentejo à China e ao Japão, e mais além-mar, dos Estados Unidos ao Canadá.
Sempre muito caçadas por toda a parte, resistem. Mais do que resistem: recuperam e prosperam. Discretamente, emparelhadas já em Setembro e prontas para o ano que há de vir.
* in revista Airo 4: 1993
** in revista Cyanopica I (4): 1974
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Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, que em 2017 esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.