Como é possível propor-se um projeto tão declaradamente contrário ao interesse, nacional, que motivou, faz esta semana 54 anos, a criação do Parque Nacional da Peneda-Gerês? Esta é a questão central que o denominado Parque Eólico de Arcos de Valdevez suscita, no momento em que se encontra em consulta aberta a respetiva Proposta de Definição Âmbito, documento que antecede o futuro Estudo de Impacte Ambiental.
O projeto envolve 32 aerogeradores que se pretendem instalar nas encostas em torno do rio Vez, desde Sistelo às cumeadas das serras da Peneda e do Soajo. A potência deste megaprojeto eólico ultrapassa os 200MW, mais de metade da de cada grupo gerador da central hidroelétrica do Alto Lindoso. Muito haveria que dizer da ameaça que constitui para o multifacetado património da região. Vou-me cingir aos valores naturais, do Parque Nacional em particular, de cujo Conselho Estratégico faço parte.
Nas quatro décadas de acompanhamento desta área protegida, tenho tido muitos momentos de desânimo, de desalento, de grande tristeza e frustração, intervalados com alguns, escassos, momentos de alegria.
Hoje o que sinto é revolta. Uma profunda revolta depois de ler páginas e páginas de um estudo que põe a nu uma avalanche de ameaças mas que se apresenta como um documento preparatório de um processo que se pretende venha a desembocar num licenciamento.
É o que a lei dita, dir-se-á. Pois é aí que eu quero chegar. O facto de os proponentes do parque eólico, oriundos de outras realidades, desconhecerem o que os seus interesses põem em causa, é lamentável. O que se revela incompreensível e inaceitável é que mais de meio século depois da criação da Peneda-Gerês ainda existam condições para que investimentos tão danosos para a salvaguarda do único parque nacional português possam ser propostos, continuem a ser tentados.
Os limites a sul da área de implantação dos aerogeradores coincidem com os limites do Parque Nacional. Mais grave, coincidem com os limites de um dos núcleos mais importantes da sua Área de Ambiente Natural (AAN) porque aqui se sobrepõem. E distam escassas centenas de metros de uma parcela da sua Área de Proteção Total. A importância desta área do Parque explica porque nele se incluiu esta verdadeira ilha, isolada do coração da reserva, reveladora de uma fragilidade do zonamento estabelecido no Plano de Ordenamento para o qual há anos chamo a atenção. Múltiplas consequências estão à vista mas não cabem nesta intervenção.
Se dentro do Parque a lei é clara e definitiva, proibindo um projeto com estas características, imediatamente fora, a norte da reserva, o local de implantação de grande parte dos aerogeradores situa-se em Sítios da Rede Natura 2000.
É dito e torna-se evidente, que não há alternativas técnicas para a contornar. Obviamente, uma vez que se pretende erigir os aerogeradores no seu seio, em Zonas Especiais de Conservação e Zonas de Proteção Especial nas cumeadas da serra onde mais tenho concentrado o trabalho de campo por ter sido o último bastião das águias-reais, que a todo o custo tentam regressar. Este projeto mata os seus territórios de caça, inviabiliza a presença desta espécie referencial onde também ocorrem águias-cobreiras, águias-calçadas, grifos, abutres-pretos, falcões-peregrinos, falcões-abelheiros, açores, gaviões… O lobo tem por aqui um dos seus últimos refúgios numa região integrada nos limites sudoeste da ocorrência europeia de um conjunto de passeriformes dos quais se destacam o picanço-de-dorso-ruivo e o cartaxo-nortenho. Daí que o território em questão seja um dos núcleos mais relevantes da IBA – área importante para as aves – das serras de Peneda e Gerês. Reserva da Biosfera, Lamas do Vez, perímetro dos seus vestígios glaciários etc, etc, levar-nos-iam a outros considerandos que já me custam e cansam desenvolver.
Os estradões em terra batida que circundam este frágil núcleo da AAN do Parque Nacional – e que há muito deveriam ser objeto de uma vigilância mais apertada e de um condicionamento eficaz, realidade para a qual em momentos anteriores apelei publicamente -, são os acessos incontornáveis a que o projeto teria de recorrer. Imaginar uma intervenção para os tornar “praticáveis” é algo aterrador. Surreal, é imaginar torres com mais de cem metros de altura, assentes em sapatas de betão com vinte metros de diâmetro, serem semeadas por entre os afloramentos rochosos de uma paisagem agreste, recôndita, silenciosa como poucas subsistem em Portugal. O impacte paisagístico de uma intervenção desta envergadura afigura-se devastador.
Quem segue de perto o Parque Nacional, ainda tem presente a recente discussão do projeto fotovoltaico (e também eólico) proposto para as albufeiras de Paradela e Salamonde. Uma outra ameaça para a Peneda-Gerês, mas não comparável à que agora se apresenta.
A gravidade dos efeitos do Parque Eólico de Arcos de Valdevez é incomensuravelmente maior. A concretizar-se, o Parque ficaria ferido de morte. Seria atingida uma das suas três mais importantes áreas de conservação.
Mas há mais! As linhas de Muita Alta Tensão para interligação à Rede Elétrica Nacional são outro problema gigantesco. Num dos cenários, inacreditavelmente admitidos, há linhas encaminhadas pelo interior para o Alto Lindoso, ou pelas encostas sul da serra do Gerês, para alcançar Frades, em Vieira do Minho.
Voltemos à Rede Natura para abordar a Caracterização do Estado Actual de Ambiente com o propósito de estabelecer a Situação Ambiental de Referência e daí a poder comparar com a previsível após a concretização do projeto, algo necessário para definir a natureza, o tipo, a magnitude e outros parâmetros dos impactes e até consequentes medidas (mitigadoras, potenciadoras ou compensatórias) a considerar se o empreendimento avançasse.
Esta questão é particularmente relevante para quem há quatro décadas clama por medidas de proteção e de recuperação necessárias para o restauro dos ecossistemas que estão na génese do Parque Nacional. A Situação Ambiental de Referência não deve ser a Situação Actual mas o estado de conservação que seria expectável se essas medidas tivessem sido implementadas e se a preservação da natureza fosse o foco principal da intervenção no território tal com inicialmente preconizado, por quem pensou o Parque Nacional. O que se vai avaliar em termos de flora (espécies presentes, definição de povoamentos, percentagens de cobertura, abundância (Escala de Braun-Blanquet) revelará, injustamente, um estado de conservação com um nível inferior. O mesmo se passa relativamente à fauna.
Dir-se-á que tal é impossível de avaliar. Porventura. Mas há que reconhecer que o gap seria muito maior e tal deve pesar nas conclusões a retirar.
A situação é duplamente negativa. Não se emendou a mão, o Parque Nacional não foi cumprido e agora concluir-se-á que os impactes do projeto não são tão gravosos face à situação atual que se vai apurar. Sobre esta questão na Rede Natura transcrevo o que é dito, porque é esclarecedor: “o projeto irá garantir a preservação dos valores em presença a serem confirmados pelas monitorizações em curso e tentar minimizar ao máximo potenciais impactes”.
Esta ideia de tentar “minimizar ao máximo” afigura-se lapidar. Nos meus longos registos geresianos não me esqueço do que a EDP prometeu no Alto Lindoso. E do que cumpriu, ou melhor, não cumpriu.
Estudos, seguimentos, diagnósticos, monitorizações… Já não basta tudo o que até agora foi feito, para avançar com o que verdadeiramente importa concretizar no terreno?
Já no que se refere à Paisagem a situação revela-se mais facilmente avaliável. Destacando-se no topo de uma morfologia bravia, pontuada por belos afloramentos rochosos, o impacte é mais realisticamente mensurável. E implacável. Não há absorção visual – capacidade do território integrar ou dissimular elementos exógenos- possível. E numa área natural com o estatuto de proteção máximo não nos podemos satisfazer com o impacte medido a distâncias de 5000 ou 10000 metros a que distam os aglomerados populacionais mais próximos.
Neste contexto há um facto relevante que agora adquire uma importância extrema e que poucos conhecerão. Há 21 anos foi colocado à discussão pública um Estudo de Impacte Ambiental para um projeto idêntico que se pretendia concretizar precisamente nesta mesma área da Rede Natura. Contra esse parque eólico, me envolvi nessa altura, acompanhando a posição do Parque Nacional e de outros cidadãos que pela sua salvaguarda lutaram. E o projeto foi chumbado! Os argumentos que acima desenvolvi não permitem admitir agora outro desfecho que não seja igual indeferimento. Assim se confirme o mesmo empenho de há duas décadas. Reafirmo para o caso presente o que na altura defendi. As consequências nefastas das infraestruturas não se cingem à sua área de implantação. Atendendo à sua localização no território do PNPG, impor-se-ão na paisagem de uma forma cruel, independentemente do cume de qualquer uma das serras da área protegida em que nos encontremos. Os estudos de impacte ambiental não podem pois incidir apenas na área de implantação do projeto mas terão que olhar para o território da Peneda-Gerês como um todo.
Não ponho em causa o interesse, a urgência da necessidade de substituirmos a queima dos combustíveis fosseis por geração de energia proveniente de fontes renováveis. Não defendo um regresso à idade das cavernas, sem computadores nem telemóveis. Mas estes argumentos não podem servir para justificar investidas recorrentes contra um património único. A mesma área ainda recentemente foi alvo de uma infame afronta patrocinada pelo próprio Estado. Uma tentativa de exploração de lítio sobre o glaciar do Vez!
Quanto vale, afinal, o Parque Nacional? As espécies selvagens, os diversos tipos de habitat prioritários que todos enaltecemos e preenchem os outdoors de vilas e aldeias e os roteiros turísticos, têm ou não direito a coexistirem, são ou não importantes para a nossa própria sobrevivência? Antes foram os grandes aproveitamentos hidroelétricos, depois as mini-hídricas. Agora são as centrais fotovoltaicas e as eólicas. A quantas mais tentativas de destruição vai a cinicamente designada “Jóia da Coroa” resistir?
Criem-se condições para que, de uma forma definitiva, os promotores de projetos frontalmente contrários à preservação do nosso único parque nacional nem sequer tentem propô-los. Neste caso bastaria a inclusão desta importante parcela de território, nos limites do Parque Nacional. Algo para o que há muito chamo a atenção. Sem sucesso.
Uma última questão atendendo ao que se sabe sobre as motivações que estão na origem do Parque Eólico de Arcos de Valdevez. Será que o Parque Nacional nada vale quando comparado com 200MW de potência elétrica instalada para auxiliar a produção de hidrogénio líquido e amoníaco verde em Sines e outros projetos europeus, como pensam os responsáveis de um Grupo internacional sediado nos Países Baixos?
Miguel Dantas da Gama, Membro do Conselho Estratégico do Parque Nacional da Peneda-Gerês