Há cerca de 20 anos que Paulo Catry estuda a vida selvagem das Falklands/Malvinas. Em Janeiro está a sua ilha favorita, Steeple Jason, por entre milhares de lobos-marinhos.
Falklands/Malvinas, janeiro 2025
Pouco se vê no nevoeiro denso, à parte os tufos de ervas muito altas (o tussac), despenteados pelo vento como cabeleiras de bruxas em viagem. Do lado das rochas do mar vem um coro de carpideiras, fantasmagórico. Mais de perto, além de gritos, ouvem-se também grunhidos vários, por vezes uma tosse e um resmungo. Mais perto ainda, um cheiro pungente, indescritível, mas característico. Não há como os odores para reconhecermos algo familiar. Encharcado de caminhar por entre a vegetação alta, chego ao litoral pejado de corpos estendidos por sobre os rochedos e os calhaus rolados. Há um grupo de abutres espalhados por ali, salpicos-negros no cenário fúnebre. Mas a sugestão é falsa, os abutres comem placentas já inúteis, o ambiente é lúgubre, mas a paisagem é de vida. Explosiva.
Há uma predileção, no mundo da comunicação, pelo dramatismo das más notícias. Ao ponto de todos termos, em maior ou menor medida, uma visão negativamente enviesada (quando comparada com a realidade) do estado da Humanidade1. Falo do estado presente, bem-entendido, já do futuro, logo se verá. Em todo o caso, se não parece razoável ter dúvidas sobre o rápido adensar das graves crises mundiais de (in)sustentabilidade e da biodiversidade, entre outras, talvez valha a pena (nem que seja por uma questão de sanidade mental) reconhecer e relembrar que nem tudo no planeta se encontra em aparente colapso. Em muitos casos concretos, antes pelo contrário.
Com um pouco mais de duas décadas de trabalho no Atlântico Sudoeste, sobretudo nas ilhas Falkland/Malvinas, com alguma incursão à Geórgia do Sul, o alongar da linha do tempo já me permite testemunhar, em primeira mão, mudanças que, de tão abruptas e inesperadas, chegam a ter uma aura milagrosa.
Estou na minha ilha favorita, Steeple Jason, no noroeste das Falkland. Um local remoto e desabitado, onde só esparsos investigadores e muito ocasionais turistas chegam, e logo partem. A ilha tem cerca de 8km de comprimento e uma única casa onde permaneci pela primeira vez há 15 anos. Nessa visita inicial, encontrei muito escassas dezenas de lobos-marinhos2 (Arctocephalus australis) que encontravam descanso nuns curtos 100m de litoral. Eram todos machos adultos.
Este ano, a zona de presença estendeu-se de 100m para uns 5 quilómetros e os lobos-marinhos de escassas dezenas passaram a milhares, incluindo grupos reprodutores com crias de pelo negro e vozes pueris3, nascidas pelo Natal.
Os poucos machos que vi há 15 anos eram sem dúvida indivíduos excluídos dos rochedos de Jason East e West Cays, visíveis a poente, já na altura apinhados com territórios de reprodução. A explosão em Steeple Jason sustenta-se nessa fonte, não é de geração espontânea. Mas acontece que uma expedição para estudar mamíferos marinhos em 1982 não encontrou nem naqueles outros rochedos quaisquer lobos-marinhos, onde agora são dezenas de milhares. O alicerce, a retaguarda original de onde chegaram novos migrantes foi outra ainda, mais recuada; o que interessa aqui é que a expansão é ampla, explosiva, mas sustentada.
Pirotecnias biológicas semelhantes aconteceram com os lobos-marinhos da Geórgia do Sul (Arctocephalus gazella), que passaram de algumas dezenas de indivíduos para 4 ou 5 milhões, ao longo de século XX. Há anos trabalhei 4 meses por ali. Passei uns tempos em que dormia num pequeno abrigo exterior. De madrugada, ao tentar sair do meu “quarto”, tinha sempre de empurrar um grande macho, que dormia encostado à entrada, para conseguir fazer mexer a porta que abria para o exterior. Na base principal, nem em raros dias de sol e calor se podia deixar a porta da rua aberta por uns minutos que fosse, sob pena de imediatamente as crias de lobos-marinhos entrarem pela casa adentro e explorarem todos os recantos.
Em terra, a única brincadeira para todas as idades, desde crias recém-nascidas até machos com idade de constituir haréns (mas ainda sem força para tal), são as lutas. Em qualquer direção para que se olhe, em qualquer momento do dia ou do limite da visibilidade no crepúsculo, há lutas a acontecerem. Peito contra peito, dentadas e golpes de força contida, é tudo a brincar. Um jovem sai da água disparado como um foguete e fica sobre uma rocha baixa. Outro junta-se-lhe. Lutam por um momento, aparece um terceiro, dois caem na água e o vencedor fica muito atento a desejar um novo adversário, que nem meio minuto tarda em aparecer. Andam nisto durante horas a fio, faça sol ou nevoeiro denso, esteja-se numa calmaria ou numa pequena tempestade.
Passam anos a lutar e a brincar, até que um dia é a valer. Esta calheta onde está instalada a casa que habitamos em Steeple é local de repouso de guerreiros derrotados. Quando regresso do trabalho nas colónias de albatrozes e vou lavar as galochas e impermeáveis ao mar, encontro-me literalmente lado a lado com grandes machos povoados de feridas medonhas, na mandíbula ou, mais frequentemente, golpes profundos atravessados frente aos membros dianteiros. A sociedade dos lobos-marinhos não tem nada de igualitária, os vencedores arregimentam um harém e a maioria dos machos fica sem nada.
As brincadeiras dos mais jovens prolongam-se para dentro de água, com perseguições, saltos, cambalhotas. O mar frente aos rochedos parece ferver de tanta atividade. Quem está descontente com estes eventos são os pinguins. Vítimas frequentes da predação de leões-marinhos (que também existem aqui, mas em pequeno número), andam num sobressalto permanente, agora que os seus locais de “desembarque” e as vias de acesso às colónias se encheram de animais parecidos aos seus pavorosos némesis. Muitas vezes saem do mar depois de um dia a pescar, sacodem-se e arranjam as penas longamente e, quando iniciam a caminhada para a colónia, assustam-se com um dos muitos lobos-marinhos e fogem de novo a correr para a água.
As várias espécies de lobos-marinhos foram caçadas (sobretudo pela sua pele), desde finais do século XVIII ao início do século XX, até quase à extinção. O mesmo se passou no Atlântico Sudoeste. Com a proteção, e apesar de tantos outros impactos negativos que temos no meio marinho, estes animais e muitas outras espécies recuperaram. Nem todas, claro. Mas este não é caso único ou sequer esporádico.
Na última manhã de trabalho nas ilhas, durante uma contagem de alcaides (Stercorarius antarcticus), somos distraídos por uma baleia-franca-austral (Eubalaena australis) que passa muito perto, mesmo no limite da orla do kelp* costeiro. Durante a tarde, na viagem de barco de regresso encontramos grupos de baleias-sardinheiras (Balaenoptera borealis) na nossa rota. Há duas décadas, quando vim trabalhar para as Falkland, estes eram eventos raros; hoje, os sopros de baleia no mar tornaram-se rotina.
Voando baixo, as baleias veem-se excecionalmente bem a partir do ar. Um piloto reformado das avionetas que ligam várias ilhas das Falkland testemunhou o seguinte: quando, nos anos 1980, viu a primeira baleia, decidiu tomar nota, pois era um acontecimento excecional. Nos anos seguintes, continuou a anotar observações até que, a dado momento, havia tantas baleias que já não era comportável manter um registo. Trata-se aqui de várias espécies de baleias, correspondendo, portanto, a várias explosões demográficas distintas. Ainda há fogos de vista lá fora.
1 Hans Rosling. 2018. Factfullness.
2 O termo lobo-marinho foi inicialmente usado para as focas Monachus monachus, parentes distantes dos animais referidos na presente crónica. Contudo, os navegadores portugueses, ao chegarem ao hemisfério sul e ao encontrarem os primeiros otariídeos, chamaram-lhes também lobos-marinhos, há 5 séculos atrás. Isto mesmo se pode confirmar, por exemplo, no Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira.
3 Álvaro Velho, referindo-se à espécie próxima Arctocephalus pusillus, na crónica da primeira viagem de Vasco da Gama, relata “…os grandes dão urros como leões, e os pequeninos como cabritos.”
4 “Kelp” são grandes algas castanhas, laminárias e outras.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.