A correspondente da Wilder, Fernanda Gamito, percorre connosco caminhos pedestres e carreiros na Serra de São Mamede, em pleno Outono, no chamado Percurso da Esperança.
É Outono e ainda cheira intensamente a esteva no carreiro que sobe, entre pinheiros-bravos e sobreiros, até à Lapa dos Gaivões, neste dia quente.
A terra está seca mas mostra sinais de chuvadas recentes que arrastaram ramos partidos e ervas para os barrancos. Na encosta da pequena Serra de Louções ouvem-se estranhos ecos de vozes ou de labores antigos ou serão os grifos que sobrevoam, lá bem alto, a crista dos Louções?
Os painéis informativos explicam o que temos à vista: diferentes comunidades humanas, entre 4000 e 2000 a.c. convergiram neste território, deixando o seu testemunho em pinturas rupestres, a ocre e vermelho – figuras humanas, animais, astrais e geométricas –, sobre a formação quartzítica virada a Sul que lhes serviu de abrigo por tanto tempo. Ficamos também a saber que estamos perante um Monumento Nacional que integra um conjunto de nove sítios de arte rupestre ao ar livre, considerado o mais importante em Portugal.
Em torno deste contraforte da Serra de S. Mamede, no limite Sul do Parque Natural, os caminhos pedestres sobem e descem o suave ondulado da peneplanície, por entre vinhas, sobreiral e pastagens, e é assim que chegamos à outra ponta do Percurso da Esperança, na freguesia com o mesmo nome, no concelho de Arronches.
No Marco, a Ribeira de Abrilongo é a linha de fronteira com Espanha.
Na margem de lá, na outra metade da pequena aldeia, El Marco, fala-se o dialeto estremenho, mas pouco, pois restam meia dúzia de habitantes. Do lado de cá, ao contrário, a aldeia está viva e recomenda-se. É na mercearia local que nos indicam o início do troço do caminho pedestre que aqui nos trouxe. Ouvimos falar de uma “catedral verde”…
Pés ao caminho. Passam pomares e hortas formosos, emoldurados pelo sobreiral esparso, cruzamo-nos com rebanhos sonoros de aparência feliz. As azeitonas pendem em cacho de oliveiras velhas, à sombra das quais floresce a erva-das-azeitonas (Calamintha officinalis) que, um dia destes, há-de servir de tempero às primeiras.
Ao passar o Monte Barba de Bode, um aviso muito hostil afixado no muro ameaça o direito de passagem. Será por aqui? Mas os traços horizontais a amarelo e vermelho não deixam dúvidas: “caminho certo”.
De súbito, numa curva, o relevo torna-se mais acidentado e o sobreiral adensa-se. À nossa frente, está um gigante de 20 metros, de braços esticados e entrelaçados nas árvores mais jovens. Serão precisos dois homens grandes para abraçar o seu tronco, onde cabem alinhados todos os quatro algarismos do último ano de descortiçamento, 2022.
Daqui para diante, até ao sítio das Aranhas, os maiores sobreiros de toda a região parecem estar reunidos em complexas assembleias, ramos velhos e retorcidos em direção ao Sol ou inclinados para os vizinhos. Não os avistamos, mas consta que as centenárias árvores servem de abrigo a várias espécies de morcegos, como é o caso do morcego de bechstein (Myotis bechsteinnii) e do morcego-lanudo (Myotis emarginatus).
No solo pouco remexido crescem cogumelos coloridos numa rede de entreajuda e “conversas” antigas com todos os seres que os rodeiam. O silêncio é dos pássaros – trepadeiras, chapins azuis, águias – e das bolotas que caem ao chão, aqui e ali.
Afinal, não achámos a “catedral verde”. Só uma floresta muito velha e sábia, mas cheia de vida, como quase tudo neste Percurso da Esperança.