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Veados (Cervus elaphus) em Montesinho. Foto: DR

Após quatro anos de pausa, o censo do veado regressou a Montesinho

31.10.2024

Contagens na região de Trás-os-Montes são hoje as únicas das populações deste grande herbívoro em liberdade na natureza. Na Serra da Lousã também existem planos para a retoma do censo, mas faz falta uma estratégia nacional para a espécie, afirma investigador.

Paulo Cortez, 58 anos, levantou-se ainda de madrugada para chegar antes do nascer do sol ao ponto de observação onde iria contar veados, numa ligeira elevação, na parte leste do Parque Natural de Montesinho. Alcançado o destino pelas 6h00, por um caminho só acessível num todo-o-terreno, ele e um acompanhante aproveitaram uns últimos momentos de quietude, rodeados pelas cores da alvorada. De seguida, atiraram-se ao trabalho até os animais se começarem a esconder, pelas 10h00.

Nessas poucas horas, munidos de binóculos e telescópios, guiados pelos bramidos que os machos de veado (Cervus elaphus) emitem no início do outono – quando disputam entre si as fêmeas na fase da brama – Paulo Cortez e os outros observadores espalhados pelo terreno foram registando em fichas e mapas todos os veados que viam e outros dados como o local e hora, o sexo, se eram jovens ou adultos, o número de pontas das hastes e se estavam acompanhados (no caso dos machos). Na manhã seguinte, um domingo chuvoso, repetiram o mesmo ritual.

“Os pontos de observação ficam muitas vezes a meio de encostas, onde conseguimos observar os machos no cimo de colinas quando estão na brama, mas também é importante conseguirmos ver outras áreas preferidas da espécie, como as azinheiras e os lameiros (prados permanentes), estes últimos ao pé das linhas de água”, explicou à Wilder este professor do Instituto Politécnico de Bragança (IPB), que impulsionou este ano o regresso do censo ao Parque Natural de Montesinho, onde se realizou no primeiro fim-de-semana de outubro.

O objetivo é continuar com as contagens anuais, de forma a ultrapassar o vazio de informação deixado pelo período em que o censo não se fez. A última contagem foi em 2019, mas antes disso os trabalhos tinham acontecido anualmente, entre 2008 e 2017. Agora, voltaram a realizar-se coordenados pelo IPB, com a colaboração da ONG Palombar, da Universidade de Aveiro e do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

De acordo com o instituto que tutela a conservação da natureza, em resposta a questões enviadas pela Wilder, “o objetivo principal é o levantamento da tendência populacional em termos de número de indivíduos”, sendo que “os dados dos últimos anos revelam alguma tendência para a estabilização da densidade populacional”.

A equipa coordenada por Paulo Cortez e João Santos, biólogo da Palombar, espera reunir várias informações sobre a espécie no Nordeste do país, desde o tamanho da população à estrutura etária e tendências demográficas. Em causa, está uma das populações de veados em liberdade na natureza mais importantes em Portugal. A espécie é uma das principais presas selvagens do lobo-ibérico, mas por outro lado arrelia os produtores agrícolas devido aos danos fortes que causa em árvores e nas culturas florestais.

Foto: Paulo Cortez

Este ano, as contagens fizeram-se a partir dos mesmos 16 pontos de observação que têm sido utilizados desde 2008, o que permite comparar os números ao longo do tempo. Cerca de 111 veados, entre machos, fêmeas e crias, foi o número máximo diário alcançado, abaixo dos mais de 170 animais registados em 2019. Ainda assim, serão precisos mais anos de contagens para perceber se existe ou não uma tendência de descida, nota Paulo Cortez.

Até porque as condições não foram as melhores, com um vento quente e seco, chuva e neblina que dificultaram as observações pela manhã. “Os animais não toleram bem o vento, refugiam-se mais”, diz o professor do IPB. E numa data em que as temperaturas costumam estar abaixo dos 10 ºC, desta vez estiveram dois a quatro graus acima, resultando numa brama que “não foi tão exuberante” como noutros anos.

Foto: Paulo Cortez

Por outro lado, a atual rede de amostragem abarca apenas uma pequena parte dos 75.000 hectares desta área protegida, limitando-se a uma porção dos 13.000 a 14.000 hectares da Zona Nacional de Caça da Lombada, situada na parte leste do parque natural. O objetivo é repetir as contagens em 2025 e nos anos seguintes, mas aumentando a área abrangida e os métodos utilizados, acrescenta João Santos, biólogo da Palombar. Em cima da mesa está a possibilidade de se realizarem transetos – percursos pré-definidos que seriam feitos de automóvel – em busca de vestígios e pistas destes mamíferos, e também o uso de câmaras de foto-armadilhagem.

Em Montesinho, os veados estão hoje bem estabelecidos, mas nem sempre foi assim. “Através da reintrodução da espécie na Serra da Cullebra, em Espanha, os veados começaram a recolonizar o lado português no início da década de 1980”, diz João Santos, que coordenou as primeiras contagens no parque natural quando trabalhava como investigador da Universidade de Aveiro.

Serra da Lousã

No resto do país, a área ocupada pelas populações selvagens da espécie parece estar a crescer nalguns pontos do território – nalguns casos fortemente, como na região Centro – mas falta um censo de larga escala a nível nacional, indica por sua vez Carlos Fonseca, professor da Universidade de Aveiro ligado à organização do censo da espécie na Serra da Lousã. Aqui, onde o veado é um símbolo da região, as contagens realizaram-se pela última vez em 2019 e está previsto o regresso aos trabalhos em 2025.

Carlos Fonseca, durante a monitorização de veados na Serra da Lousã. Foto: D.R.

Quanto ao Sul, a realidade é diferente do que se passa no Norte e Centro: a espécie está mais distribuída, mas muitos animais vivem confinados em zonas de caça muradas e não em liberdade na natureza.

Entretanto, apesar de haver atualmente várias equipas de investigadores que trabalham com este herbívoro, “não existe uma estratégia nacional para o veado”, afirma Carlos Fonseca, que considera que o ICNF poderia avançar com um estudo que permita um retrato mais completo, de norte a sul do país. “As equipas vão fazendo o que podem pelos seus meios, mas falta uma estratégia nacional para que pelo menos, de vez em quando, se faça um censo mais abrangente para avaliar a situação da espécie.”

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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