Fotos: Paulo Catry

Crónicas naturais: Agosto na raia

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Paulo Catry leva-nos com ele até às paisagens de fronteira da Beira Baixa, um pé em Portugal e outro em Espanha, o ar escaldante e pedaços da vida rica e inesperada que afinal persiste neste calor.

Salvaterra do Extremo, 11 agosto 2024

Com o alongar das sombras, aos poucos dá-se uma nova alvorada entre a avifauna, a segunda deste longo dia. Chama brevemente uma trepadeira e logo um chapim. Saio de casa, depois de horas ao computador, para ver e ouvir. De dia ainda soprou um vento fraco e sob o sol esmagador tudo foi silêncio, nem sequer um estridular de cigarras, só o remoer da folhagem. Mas o vento parou. Todos os ramos, todas as folhas estão agora perfeitamente imóveis. O mundo vegetal está exausto. A paisagem imediata evoca uma natureza morta. 

O ar continua escaldante, quarenta e um graus, mas a faca solar já não se espeta sobre quem se mova. Os pássaros voltam brevemente à vida. As conversas são lacónicas, sem ênfase, chamamentos monossilábicos. Cantos, por um momento apenas, só o das rolas-turcas, uma inovação ainda recente nestas terras, a substituir o das rolas-bravas desaparecidas. Até os papa-figos, pródigos em recitais à torreira do sol, não soltam mais do que um breve lamento. Trigueirões ceiam no restolho, de bico arfante esgravatam sementes caídas. Um picanço-barreteiro apanha um escaravelho imprudente. No ar parado, até o roçar das penas de uma toutinegra nas giestas densas é claramente audível. 

Fosse o verão doutro ano qualquer e o calor constante destas semanas traria antevisões do dia do juízo final. Secavam azinheiras e sobreiros, como cada vez mais se tem visto. Mas este inverno, por aqui choveu como já há muito não acontecia; o ano anterior também tinha calhado ser pluvioso. As árvores mostram-se excecionalmente viçosas, copas densas, longos renovos ainda tenros. As oliveiras estão carregadas de azeitonas verdes, a prometerem outono. 

Ervas loiras não são sinal de falta de água, secar no estio é uma estratégia de vida muito mediterrânica; as sementes aguentam tudo, enquanto esperam pelo renascer do tempo. Piso a palha estaladiça e cismo com bolbos e rizomas enterrados no solo quente. Quem diria que por aqui florescem noselhas, gladíolos e cebolinhos alvos quando é época disso?

Duas cabras negras saem da sombra densa de um sanguinho-das-sebes. Movem-se lentas por sob as ruínas das muralhas do Castillo de Peñafiel. São animais assilvestrados, coisa pouco vista em caprinos pelo país. Cheguei a contar dúzia e meia, de várias cores, já lá vão dezassete anos. Já nesse tempo eram bravias e ariscas, nenhuma tinha guizos ou brincos. Habitavam esta garganta do Erges e aqui se reproduziam, mas poucos cabritos sobreviviam (seriam as águias e os bufos que os comiam?). Quando o rio engrossava ficavam confinadas a uma das margens, invernos houve em que foram espanholas, extremenhas, outros anos fizeram-se portuguesas, beirãs. E outras vezes desapareciam meses a fio, iam para jusante, para o lado dos Canchais, por onde não anda ninguém. Estas duas são o que resta, sempre juntas na mesma fraga, o andar hesitante revela-lhes fadiga ou quiçá desalento. 

Um casal de corvos chega do lado poente. Os grandes pássaros pretos fazem vários voos de volta do castelo, assegurando-se de que não há gente. Depois poisam na janela da torre de menagem, ainda imponente no centro dos escombros das muralhas. As arcadas e a rosácea de pedra trabalhada testemunham a destreza de um artífice desaparecido há cinco séculos, o que não seria poder conversar com ele agora. Ou com algumas das donzelas que por ali se sentaram a bordar; meninas finas, possivelmente não nos entenderíamos. Confirmada a presença de fantasmas e a ausência próxima de gente viva, de um salto curto o corvo mais afoito apropria-se da fortaleza e desaparece no salão senhorial. O outro entra logo de seguida.

Regresso ao quintal. Um a um, vão passando os charnecos, de árvore em árvore, como se o calor não permitisse mais do que voos curtos. Com voz arrastada, mantêm contacto e vão discutindo sobre o local da pernoita. Aos poucos afastam-se, até deixarem de se ouvir. Volta a calar-se tudo para um último e espesso silêncio antes do despertar dos grilos. Junto ao alecrim, ficou uma pele de cobra caída. Cumprimento a osga abrigada debaixo do tampo do poço. Rego as romãzeiras.


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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