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uma coruja-das-torres em voo
Coruja-das-torres. Foto: Edd Deane/Wiki Commons

Está nos genes: Como se forma uma pena (uma história anterior à dos dinossauros)

18.07.2024

Pedro Andrade, investigador no BIOPOLIS-CIBIO (Universidade do Porto), conta a história que levou à evolução de estruturas tão complexas como as penas.

O que é uma ave sem as suas penas? Desde os tempos de escola, aprendemos que as aves são caracterizadas pela presença dessas estruturas de queratina que lhes revestem o corpo. Parece-nos impossível imaginá-las sem isso, mas as penas tiveram de surgir nalguma altura do percurso evolutivo destes animais, ou então outras estruturas semelhantes que serviram de precursoras. Como apareceram então estas estruturas complexas?

A evolução das penas, perdida no tempo

Desde meados do século XIX, a esperança de se encontrarem pistas sobre as origens das penas residia nos fósseis da “primeira ave”, a Archaeopteryx lithographica. Esta espécie, que viveu há 150 milhões de anos, tinha características típicas de dinossauros (longa cauda óssea, dentes, dedos das mãos com garras), assim como uma cobertura de penas bem desenvolvida e muito semelhante à das aves atuais, incluindo penas assimétricas nas asas, indicadoras de alguma capacidade de voo ou sustentação. Isto sugere que a evolução inicial das penas terá sido anterior à evolução das aves.

Foi então que, nas últimas três décadas, várias espantosas descobertas de fósseis de dinossauros com estruturas semelhantes a penas, em diversos estados de desenvolvimento, ajudaram a preencher os espaços em branco no conhecimento. Foram encontrados diferentes vestígios, desde simples filamentos a penas simétricas simples e até mesmo penas assimétricas complexas com funções aerodinâmicas. Estas últimas teriam já várias funções, desde a regulação da temperatura corporal até à produção de cor.

Esses fósseis permitiram confirmar algo de que já se suspeitava há muito: as aves descendem de dinossauros carnívoros. Mas os cientistas aperceberam-se também de que outros grupos de dinossauros tinham também essas estruturas de revestimento, empurrando a evolução das penas para trás no tempo. Nos últimos anos, surgiram aliás evidências de que não só os dinossauros, mas também os seus parentes chamados pterossauros, répteis antigos que evoluíram a capacidade de voar de forma independente, possuíam igualmente penas.

Assim, concluiu-se que muito antes de surgirem aves, já vários animais pré-históricos possuíam penas primitivas, inclusivé o primeiro dinossauro que esteve na origem de todas as espécies mais famosas destes animais pré-históricos, há mais de 230 milhões de anos.

A “primeira ave”, Archaeopteryx lithographica, viveu na Europa do final do Jurássico há cerca de 150 milhões de anos. Embora considerada quase universalmente como o protótipo da ave ancestral, a presença de penas já com aspeto moderno indica que estas estruturas têm elas próprias um passado mais profundo, ligado aos antepassados das aves. O fóssil na fotografia encontra-se exposto no Museu de História Natural de Berlim. Fonte: Pedro Andrade

Penas a partir de escamas?

Apesar destes avanços no conhecimento, os cientistas ficaram ainda com outras questões por responder. Por exemplo, como é que durante a evolução terá surgido uma característica tão complexa como uma pena?

Penas, pêlos ou escamas são estruturas que não fossilizam com facilidade. Por isso, não há muitas evidências diretas de fósseis que mostrem como é que estas estruturas surgiram umas a partir das outras durante a evolução dos vertebrados. Se é que isso sucedeu assim.

Serão as penas meras escamas alongadas, tornadas progressivamente mais complexas após milhões de anos de evolução? Evidências fósseis e estudos de desenvolvimento embrionário sugerem que as penas primordiais parecem ter sido filamentos alongados simples, sem uma ligação óbvia às escamas dos répteis.

Para resolver esta aparente desconexão, as ferramentas da genética e da biologia molecular têm-se revelado particularmente úteis. Se bem que com algumas especificidades anatómicas, as penas e as escamas, assim como os pêlos dos mamíferos (incluindo os do próprio leitor), possuem uma origem celular comum durante o desenvolvimento da derme e a formação inicial destes revestimentos é determinada pela ação de um conjunto reduzido de genes – os mesmos em aves, répteis e mamíferos.

Podemos comparar isso com a preparação de um bolo. Se tivermos uma receita para fazer um bolo de cenoura, mas quisermos mudar para um bolo de laranja, talvez a melhor estratégia não seja colocar umas rodelas de laranja em cima do bolo de cenoura, nem tão pouco inventar do zero a maneira como vamos chegar a esse resultado. A melhor estratégia será pegarmos na mesma receita que já tínhamos e ajustar os tempos de cozedura e um ou dois ingredientes conforme necessário, para termos finalmente o bolo desejado.

De facto, mais do que uma escama que é transformada numa pena, ou uma pena que evoluiu do “nada”, durante a evolução dos antepassados dos dinossauros o seu livro de receitas foi reaproveitado, socorrendo-se dos mesmos ingredientes genéticos que eram usados para o início da formação de uma escama, preparando-os de forma um pouco diferente para gerar uma pena.

Um interruptor genético na base do desenvolvimento das penas

A forma como estes “ingredientes genéticos” se combinam não é de todo simples. Todavia, por vezes pequenas mudanças no ingrediente certo podem ter consequências importantes nas características externas de uma espécie.

A complexa teia de genes que interagem entre si para dar origem a penas, escamas ou pêlos durante o desenvolvimento de um animal, funcionam um pouco como uma máquina de Rube Goldberg – para quem via os desenhos animados do “Tom & Jerry”, aqueles mecanismos muito complexos que começam com um passo inicial simples, mas que rapidamente resulta numa série de reações em cadeia, cada uma dependente da anterior e preparando a seguinte, até se atingir o objetivo final.

Como espremer uma laranja começando numa garrafa de leite vazio? Embora as interações entre genes sejam mais otimizadas do que as propositadamente complicadas máquinas de Rube Goldberg, muitos dos processos biológicos dependem de cadeias de genes cujas interações são iniciadas por um sinal que diz às celulas como se comportarem. Este sinal inicial começa uma reação em cadeia, na qual cada passo do processo tem uma função específica para chegar ao objetivo final. Fonte: Rube Goldberg.

Quando os genes interagem para decidir se as células da pele vão dar origem a uma escama ou uma pena, alguns dos processos são semelhantes a estas máquinas de Rube Goldberg. As interações genéticas que levam às diferentes formas de diferenciação celular dependem muitas vezes de alguns sinais iniciais, que depois influenciam a ativação de outros genes abaixo na cadeia, que por sua vez ativam novos genes, e por aí em diante.

Uma destas cadeias que determina o destino do desenvolvimento das penas e escamas é a chamada via sinalizadora ‘Sonic hedgehog’, que começa com um gene com esse mesmo nome, e que nesse sentido funciona como o interruptor que, ligando ou desligando, determina todo o funcionamento posterior da cadeia. O gene em si foi assim batizado em honra da personagem de jogos de computador da Sega (sim, muitos cientistas são nerds!). Na verdade, esta cadeia de sinalização atua no início do desenvolvimento de muitos tipos celulares, não apenas da pele. Mas neste caso, vários estudos mostraram que se trata de uma peça fundamental que diz aos tecidos se se irão transformar, por exemplo, numa pena ou numa escama.

Como de costume, estamos longe de perceber exatamente como estas interações funcionam mas, passo a passo, os cientistas têm vindo a aproximar-se da resposta. Um exemplo disso é um estudo recente, feito com galinhas em laboratório, no qual investigadores trataram embriões de galinha com um composto que promove a expressão de um dos componentes iniciais da cadeia de sinalização ‘Sonic hedgehog’. Como resultado obtiveram galinhas cujas patas, em vez de ficarem cobertas por escamas, tinham penas bem desenvolvidas, com uma ráquis central e barbas ramificadas. Igualmente importante foi os investigadores perceberem que esta ação é definitiva – basta promover essa transição durante a altura certa no desenvolvimento embrionário, para as células das patas “aprenderem” que é suposto fazerem crescer penas. A ação destes genes determina o destino das células durante o desenvolvimento embrionário.

Em algumas aves, como neste bufo-americano (Bubo virginianus), as patas não estão revestidas de escamas, mas sim de penas. Esta mudança parece complicada, mas estudos recentes sugerem que alterações à ação de uns poucos genes-chave podem ser suficientes para alterar o destino das células da pele durante o seu desenvolvimento inicial. Fonte: Virginia State Parks (CC BY 2.0).

Na Natureza, algumas espécies de aves possuem aliás este padrão de desenvolvimento, como por exemplo várias rapinas noturnas. Alguns fósseis de dinossauros com penas sugerem também que o estado ancestral para as aves terá sido terem penas até perto da extremidade das patas. 

É difícil olhar para um passado de milhões de anos e perceber exatamente como é que a evolução decorreu. Mas com estas descobertas, ficámos a saber que a transição entre estruturas tão diferentes como uma pena e uma escama pode ser alcançada com apenas alguns ajustes genéticos.

Estas descobertas são importantes não só para decifrarmos os passos que levam à evolução de estruturas tão complexas como as penas, mas são também vitais para percebermos como a Natureza utiliza a sua maquinaria genética pré-existente para gerar nova diversidade e novas funções.


Referências

Cincotta, A., Nicolaï, M., Campos, H. B. N., McNamara, M., D’Alba, L., Shawkey, M. D., … & Godefroit, P. (2022). Pterosaur melanosomes support signalling functions for early feathers. Nature, 604(7907), 684-688.

Cooper, R. L., & Milinkovitch, M. C. (2023). Transient agonism of the sonic hedgehog pathway triggers a permanent transition of skin appendage fate in the chicken embryo. Science Advances, 9(20), eadg9619.

Di-Poï, N., & Milinkovitch, M. C. (2016). The anatomical placode in reptile scale morphogenesis indicates shared ancestry among skin appendages in amniotes. Science Advances, 2(6), e1600708.


A série “Está nos genes”, sobre a genética da vida selvagem, é da autoria de Pedro Andrade, investigador em biologia evolutiva no BIOPOLIS-CIBIO – Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, onde estuda a evolução e genética de animais selvagens e domésticos. Descubra aqui mais artigos deste cientista.

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