Raquel Gaspar, bióloga marinha e co-fundadora da Ocean Alive, explica porque se opõem à destruição deste habitat no estuário do Sado, prevista devido à construção de um parqueamento para embarcações.
O sapal e a pradaria marinha da Açoreira, na margem norte do estuário do Sado, poderão desaparecer em breve soterrados por sedimentos de dragagens no fundo do estuário, no âmbito da construção de um estacionamento para as embarcações da Etermar, uma empresa de engenharia marítima.
Confrontada com o projecto e com a falta de procura de alternativas, a Ocean Alive lançou um apelo à participação geral no processo de consulta pública, que terminou esta quarta-feira, dia 4 de Outubro. Raquel Gaspar acredita que, havendo vontade, a empresa poderia optar por uma solução de parqueamento que não levasse à eliminação destes habitats, mas sim à sua recuperação e crescimento, até devido ao “pioneirismo” associado ao mercado do carbono azul. “A Etermar é proprietária do espaço do domínio público marítimo onde está a pradaria e o sapal. Esta é uma oportunidade singular”, afiança.
WILDER: Porque é importante manter a pradaria e o sapal da Açoreira, quando existem mais de uma dezena de outras pradarias marinhas no Estuário do Sado? Porque devemos manter esta pequena porção?
Raquel Gaspar: Porque restaurar a natureza significa, em primeiro lugar, não perder o que temos. Cerca de metade das pradarias do estuário do Sado são, tal como esta, de pequenas dimensões, pois têm apenas três ou menos hectares. E este cenário é o resultado da perda de grandes áreas de pradarias que existiram no estuário do Sado.
A ciência mostra-nos que já perdemos um terço das pradarias do planeta, mas que nas últimas décadas houve uma inversão do declínio, devido a uma melhoria da qualidade das águas costeiras, por exemplo na Europa. A ciência também nos mostra que a recuperação de habitats-chave, como as pradarias e os sapais, é vital para a biodiversidade marinha e para mitigar as alterações climáticas, para além de outros benefícios, como a limpeza da água, a produção de oxigénio e a proteção costeira. A pradaria e o sapal da Açoreira dão-nos todos estes benefícios!
A boa notícia é que constatamos, com base na análise das fotografias de satélite, que a pradaria da Açoreira está a crescer.
W: Haverá possibilidade de conciliar um projecto deste tipo com a protecção da pradaria e do sapal?
Sim, através de uma alternativa de parqueamento que valorize os benefícios associados aos serviços ecossistémicos da pradaria marinha e do sapal. Por exemplo, a valorização dos serviços de sequestro de carbono e de azoto poderá ser conseguida através do restauro da pradaria e do sapal, mantendo e aumentando as áreas. Devido à pequena dimensão das áreas, a pertinência desta oportunidade não está no valor monetário resultante da possível venda dos créditos, mas sim no pioneirismo.
A Etermar é proprietária do espaço do domínio público marítimo onde está a pradaria e o sapal. Esta é uma oportunidade singular, porque acontece no momento em que a Fundação Calouste Gulbenkian acaba de lançar um roteiro para o mercado voluntário do carbono azul em Portugal. E porque, de um modo geral, estes ecossistemas estão fora da propriedade privada. Finalmente, a opção do restauro face à eliminação destes ecossistemas beneficiaria a certificação ambiental desta empresa, cujo impacto é no meio marinho.
A Ocean Alive propôs à empresa algumas soluções alternativas ao projeto de parqueamento, como o parqueamento partilhado utilizando portos de outras empresas ou o parqueamento através de poitas helicoidais.
A sociedade deve exigir alternativas de parqueamento que valorizem a pradaria e o sapal. Não podemos continuar a matar o mar para dar vida à economia. Quanto mais vida dermos ao mar, mais haverá riqueza e bem estar.
W: No resumo não técnico do projecto de execução disponível no portal Participa, é referido que no que respeita à biodiversidade será eliminada “uma pequena zona húmida”, na qual não se registam “habitats ou espécies prioritários”, pelo que o impacte negativo será “pouco importante”. Concordam com esta afirmação?
Raquel Gaspar: Os estudos de impacto ambiental não exigem a avaliação da perda dos benefícios ambientais associados aos serviços ecossistémicos dos habitats. A Ocean Alive baseou-se na literatura científica para apresentar à empresa uma estimativa do valor dos benefícios que iremos perder com a eliminação da pradaria.
Partilhamos estes valores com o público, nas nossas redes sociais, informando as fontes destes cálculos indicadores. Por exemplo, o serviço de sequestro de carbono da pradaria da Açoreira pode ser avaliado em mais de mil e duzentos dólares por ano (cerca de 1142 euros) e o serviço de reciclagem de nutrientes em cerca de 60.000 dólares por ano (cerca de 57.000 euros).
A pradaria e o sapal estão também numa área de protecção litoral da Reserva Ecológica Nacional. Este serviço da pradaria, através da atenuação das ondas e estabilização do sedimento, é avaliado em cerca de 14.000 dólares (cerca de 13.300 euros).