O belo e sarapintado gamo está hoje reduzido a um papel cinegético, mas se lhe dermos mais espaço, pode desempenhar um importante papel nos ecossistemas, afirma Daniel Veríssimo, um economista maravilhado pela natureza.
O gamo (Dama dama) é uma espécie de cervídeo, como o corço e o veado vermelho. No passado existia desde o Médio Oriente ao Sul da Europa, desde as zonas na fronteira do Levante às paisagens mediterrâneas da Bulgária, Grécia e Itália. Há também registos de outras espécies do mesmo género Dama que habitavam um pouco por toda a Europa, que hoje estão extintas.
Este cervídeo é mais pequeno que um veado e maior que um corço, com um padrão de pelo castanho às pintas brancas. Os machos podem medir entre 80 centímetros a 1 metro de altura, pesam até 100 quilos e têm hastes; as fêmeas são um pouco mais pequenas, podendo medir entre 70 a 90 centímetros e pesar até 50 quilos. Podem formar grupos ou andar sozinhos.
Apesar de existirem populações desta espécie em Portugal, a maioria habita em herdades, cercados ou zonas de caça, como a Tapada de Mafra e algumas propriedades no Alentejo. A única população livre existe no Vale do Guadiana e resultou da fuga de animais de coutadas de caça. Aliás, a razão para haver populações de gamo na Península Ibérica e noutras partes da Europa é a caça, pois as hastes dos machos eram e são um troféu de caça apreciado.
Mas o papel do gamo é muito mais do que cinegético, esta é mais uma espécie que pode dar e devolver vida aos ecossistemas. Trata-se de mais um herbívoro para jardinar a paisagem, espalhar sementes, prevenir incêndios e criar uma paisagem em mosaico. É mais uma presa potencial para o lobo e para o lince-ibérico, mais um animal que no fim da vida pode ser alimento para abutres. Pode completar funções que estão enfraquecidas ou ausentes da paisagem: é mais um animal para restaurar processos naturais (a pastagem), para transportar nutrientes na paisagem (através dos excrementos), para ativar o ciclo de carbono e para aumentar a resiliência dos ecossistemas às alterações climáticas.
Há diferenças claras entre herbivoria e criação de gado. Herbivoria é o que faz falta nas paisagens de Portugal, de Norte a Sul com altas taxas de abandono da atividade agrícola, é a peça em falta para devolver vida aos territórios, prevenir e mitigar incêndios florestais e reativar o ciclo de carbono. Herbivoria é um processo natural, desempenhado por várias espécies de animais, livres, em paisagens abertas e com diferentes preferências alimentares — alguns por arbustos, outros por ervas, outros ainda um misto de ambos, com variados tamanhos e comportamentos, isolados ou em grupos consoante a espécie e altura do ano. Já a criação de gado é feita por norma com uma espécie, em zonas vedadas e com animais domésticos, para uso do ser humano.
Em Espanha, zonas emblemáticas têm populações selvagens de gamo no Parque Nacional de Doñana, nas serranias de Cazorla, ou ainda na Cordilheira Bética nas Serras do Alto Tejo. Nestes ecossistemas a espécie partilha o habitat com linces e flamingos em Doñana, com quebra-ossos e muflões em Cazorla e com cabras-montesas, veados e corços no Alto Tejo.
Em Portugal existem muitas outras áreas que podem albergar populações de gamo, das terras frias às terras quentes do país, do Litoral ao Interior; das Serras do Algarve, de Monchique ao Caldeirão, às montanhas do Marão, Alvão e Gerês; dos pinhais banhados pelo mar de Setúbal, Marinha Grande e Aveiro aos campos de Moura e Barrancos, Tejo Internacional e Planalto do Côa; das serras da zona Centro da Arada, Freita e Montemuro às serras da Lousã, Açor e Estrela; das zonas periurbanas de Sintra, Costa da Caparica e serras do Porto às zonas remotas de Montesinho, Malcata e Marvão. O gamo é um animal adaptável, capaz de sobreviver e prosperar numa grande diversidade de habitats.
Pode ser ainda uma oportunidade económica, terreno fértil para um verdadeiro turismo de natureza, além de evitar custos na limpeza de matos ao pastorear a paisagem, ou também reduzir os custos com indemnizações por ataques de lobo a gado doméstico (uma das razões para os ataques é a falta de presas selvagens).
Imagine-se a visitar uma área protegida num passeio em todo-o-terreno, num carro elétrico, e a ver na mesma manhã fresca de Outono várias espécies de herbívoros. Nas clareiras, gamos e cavalos selvagens; nas orlas da floresta de carvalhos, veados; nas zonas mais fechadas de matos, corços e auroques; nas zonas escarpadas, cabras montesas e muflões. Seria como olhar para uma paisagem viva moldada por várias espécies de jardineiros que desempenham o seu papel no ciclo da vida, que são comida para linces e lobos e carcaças para abutres, águias e corvídeos.
É preciso ter uma visão mais flexível de espécie nativa: uma coisa são espécies de animais e plantas que vêm do outro lado do mundo, como o eucalipto ou a acácia, outra são espécies como o zambujeiro ou a alfarrobeira de regiões geográficas próximas como o Norte de África ou o Médio Oriente, na bacia do Mediterrâneo.
É preciso passarmos de uma visão purista para uma visão flexível, gerir declínios para promover abundâncias, estancar a destruição para atuar no restauro. Hoje o gamo é algo esquecido e desvalorizado, mas se for lhe dada uma oportunidade, pode desempenhar um papel nos ecossistemas da Península Ibérica.
O gamo pode ser selvagem em Portugal.
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