Daniel Veríssimo, um economista maravilhado com a vida selvagem, fala-nos do auroque, o antepassado perdido da vaca e do boi doméstico, e da possibilidade de o termos de volta.
O auroque (Bos primigenius), o irmão selvagem do gado doméstico. Podia pesar até uma tonelada, medir quase 2 metros de altura, cada corno tinha até 80 centímetros e vivia em grupos familiares (1). Evoluiu quando existiam leões, hienas e leopardos na Europa e na Península Ibérica e partilhou habitat com elefantes europeus, bisontes, cavalos, veados e javalis (2).
No passado, o auroque era comum desde a Escandinávia ao Magreb, ao longo do Médio Oriente até ao continente Indiano e ao longo das planícies da Ásia Central até à Coreia. Vivia numa grande diversidade de habitats e de climas, era um dos grandes mamíferos destas regiões. Existiam 3 subespécies, uma na Europa, outra no Norte de África e outra na Índia. Na Península Ibérica também era comum, migrava entre terras altas no Verão e terras baixas no Inverno, à procura de abrigo e alimento (3).
São vários os registos fósseis e de arte Paleolítica nas grutas e cavernas de Espanha e França (4) e a céu aberto nas rochas do Côa (5). Deixou uma marca única na cultura, é um símbolo maior das lendas da antiga Grécia e do Egito, ainda hoje a vaca e o boi são sagrados na Índia e a “porta entre a Europa e a Ásia” – o estreito do “Bósforo”, em Istambul, cujo nome significa “passagem de bois” – demonstra a marca duradoura do Auroque na imaginação e cultura do ser humano (6).
A caça, a destruição e simplificação de habitat e a concorrência com gado doméstico são as principais razões para o seu desaparecimento. O último exemplar foi caçado em 1627, no século XVII, na Polónia (7).
Hoje, em algumas partes do mundo, existem descendentes do auroque em estado selvagem ou semi selvagem. Na Índia, no Parque Nacional de Kunu, existe uma população de gado (Zimbu) a viver em estado selvagem (8). Na Europa Central, em algumas áreas piloto -como Milovice na República Checa (9), nas Planícies de Lika na Croácia (10) ou Oostvaardersplassen nos Países Baixos (11) – procuram restaurar e estudar o papel do auroque no ecossistema.
Existem raças rústicas e antigas que preservam traços do auroque original em Portugal: a maronesa, nas serras do Alvão e Marão; a arouquesa, na Arada, Freita e Montemuro, a mirandesa em Trás-os-Montes ou, a Barrosã nas serras minhotas da Peneda e Gerês (12).
O auroque é um animal de grande porte e, por isso, são “jardineiros” de grandes paisagens, capazes de derrubar médias árvores e de arrancar pequenos arbustos, diminuindo a quantidade de biomassa e moldando a estrutura da vegetação, o que previne e reduz a severidade dos incêndios (13), promovendo a captura e armazenamento de carbono (14). Criam trilhos para outros animais, transportam nutrientes ao longo de vastas distâncias (15) e promovem a dispersão de sementes (16).
São ainda um elo importante (17), geram oportunidades para insetos (como escaravelhos e borboletas), aves e roedores usam o pelo para ninhos, mantêm um mosaico de habitats que beneficia o coelho e a perdiz, são uma presa potencial para lobos e alimento para aves necrófagas como abutres e corvídeos. Por ser uma espécie que precisa de grandes áreas, o auroque necessita de zonas vastas dedicadas à conservação da natureza. Além disso, é uma espécie que exibe um comportamento migrador, o que permite criar corredores entre áreas naturais beneficiando muitas outras espécies de animais e plantas (18).
Uma análise económica mostra que replicar o papel do auroque na paisagem é caro e dispendioso: ou é realizado por sapadores florestais e maquinaria, como moto roçadoras e tratores, ou através de subsídios usando animais domésticos em áreas naturais classificadas, o que pode ser uma opção em algumas situações (19), mas não a medida por defeito para restaurar e conservar habitats.
Existem importantes diferenças entre um animal doméstico e um animal selvagem (20). Um animal selvagem não tem dono, não recebe alimentação ou cuidados veterinários, não é elegível para receber subsídio agrícola e não tem necessidade de vedações. O impacto na paisagem e no ecossistema também é diferente. Vedações e arame farpado para animais domésticos criam barreiras nos habitats; o número de animais domésticos por hectare tende a ser mais elevado do que em densidades naturais o que pode levar ao pastoreio excessivo. E o conflito com outra vida selvagem, se um animal doméstico for atacado ou comido é um prejuízo e um problema; se for um animal selvagem é um processo que faz parte do ecossistema.
Em Portugal existem várias áreas que podem albergar o auroque, áreas naturais classificadas, com bom habitat e baixas densidades populacionais, zonas montanhosas como Montesinho ou a Malcata, zonas agrícolas marginais em Trás-os-Montes, entre a Terra Fria e a Terra Quente, Serra do Açor e da Lousã, até as Serras do Algarve.
O auroque está extinto mas podemos usar raças com características antigas para recuperar funções perdidas ou, através dos descendentes domésticos do auroque, criar através de cruzamento inverso um Auroque 2.0 com as características idênticas às do auroque antigo (21).
Devemos apostar em práticas agrícolas para a manutenção de funções nos ecossistemas ou restaurar funções perdidas com animais selvagens? É preferível manter um ecossistema degradado ou abraçar a incerteza e restaurar ecossistemas? Gerir declínios ou promover abundâncias? São algumas questões que o possível regresso do auroque coloca. A perda de biodiversidade e bioabundância à escala planetária precisa de respostas ambiciosas (22). O regresso do auroque pode ser uma dessas medidas.
Para quando o regresso do auroque (2.0) a Portugal?
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