Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica fala-nos da sua viagem ao Banco de Arguim, na Mauritânia, e das tartarugas e tantas outras espécies que lá viu.
Banco de Arguim, 31 Outubro 2021
Espantado o medo do Bojador, os portugueses desceram esta costa por 1441-45, diz-se que no encalço dos sonhos de um infante chamado Henrique. Por aqui, em redor da ilha de Arguim, onde se estabeleceu o primeiro forte luso numa África já com ares subsarianos, estende-se agora um dos maiores parques nacionais com vocação marinha do continente: o Parc National du Banc d’Arguin (PNBA – Mauritânia).
A paisagem atinge, em vastos setores, uma simplicidade extrema: o deserto branco justaposto ao azul atlântico, separados por uma linha quase reta entre a areia e a água. Nalgumas áreas surgem ilhas, desertas também, e extensos bancos de areia e de vasa que a maré drena por canais serpenteantes, duas vezes ao dia. Em terra não cresce praticamente nada. A vida concentra-se no mar.
Nesta orla do Sara, a profusão de migradores não é descritível em poucas palavras. Está aqui, por exemplo, aquela que é a mais espetacular concentração de aves limícolas do planeta. Rolas-do-mar chegadas da Gronelândia e de Ellesmere, fuselos e tarambolas que falam russo com sotaque siberiano, seixoeiras e pilritos a caminho da Namíbia e da África do sul, entre muitos outros.
Ao largo está a corrente das Canárias, um dos mais ricos afloramentos costeiros de todo o mundo. Frequentam-no baleias-de-barbas que percorrem o Atlântico Norte de lés-a-lés; painhos e pardelas fugidos dos invernos antárticos; alcatrazes escandinavos, britânicos, islandeses, canadianos (da Terra Nova) até. Cagarras que conhecem parte do Oceano Índico.
E borboletas da Europa, libélulas, poupas, felosas, alvéolas, tantas outras viajantes, a lista parece sem fim.
Em 2001, com colegas guineenses e escoceses, colocámos os primeiros transmissores-satélite em tartarugas marinhas após a desova no arquipélago dos Bijagós, na Guiné-Bissau. Várias das tartarugas percorreram mil quilómetros para norte e vieram instalar-se no Banco de Arguim. Muitos anos de estudo mais tarde, surgiu finalmente a oportunidade de virmos atrás das tartarugas, e por aqui temos andado recentemente.
Depois de séculos a lançarem redes a pé, os Imraguen locais herdaram lanchas dos pescadores das Canárias, e ainda hoje as utilizam. O regulamento do PNBA manda que neste parque só se trabalhe de barco à vela. É pois no silêncio da navegação à bolina que vamos à pesca de tartarugas-verdes Chelonia mydas. Ficam-nos bem as velas triangulares, pensamos pretensiosos, em memória das caravelas quatrocentistas.
Esta pesca tem propósitos científicos, exclusivamente. Usamos redes de malha larga, da faina das grandes corvinas que ainda abundam por estes lados. As tartarugas maiores são pesadas, mas os Imraguen são fortes e engenhosos, içam-nas para bordo usando um sistema de roldanas suportado em moitões maciços de madeira esculpida. As tartarugas mais pequenas são tão leves quanto bonitas. Parecem-me jóias, brilhantes da água do mar. Custa até libertá-las no final.
Colocamos transmissores para o seguimento-satélite. Obtemos amostras, bocadinhos de pele que no laboratório se desdobram em longas sequências de ADN que revelam migrações tão espantosas quanto as das aves. Uma parte substancial das tartarugas jovens que aqui crescem nasceu no continente americano*. Mas a maioria, e a totalidade das adultas, são africanas, guineenses sobretudo.
As crónicas do Zurara estão cheias de heroísmos, mas também de sofrimento, dos naufrágios, dos inúmeros lobos marinhos que por aqui massacrámos, dos lamentos e lágrimas dos cativos (escravos) comprados ou capturados, tantas vezes referidos no balanço dito proveitoso das missões de descobrimento.
Hoje descobrimos também, mas já em colaboração estreita com os mauritanos quadros do PNBA e do instituto das pescas, e com os pescadores Imraguen. Chegamos a trazer colegas guineenses para virem connosco aqui investigar o que fazem as tartarugas que eles e os mauritanos têm conservado com notório sucesso. A população de tartarugas-verdes destas paragens africanas está em franco crescimento. No PNBA, estimamos que se contam às muitas dezenas de milhares; mas estimamos preliminarmente, a investigação prossegue ainda. E a conservação também. Mar de tartarugas.
Em Arguim abundam silêncios do deserto, temperados por conversas de aves distantes. Esta terra é de alísios, e do mar. Vento fraco, vento forte, persistente, vento com velas e asas. Foram séculos e milénios, e ainda sobram viagens.
* Rita Patrício et al, em preparação
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.