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Pode o urso-pardo voltar a Portugal? 

30.06.2022
Foto: neusitas/Wiki Commons

Daniel Veríssimo, um economista maravilhado com a vida selvagem, fala-nos sobre o urso-pardo, “o grande jardineiro dos bosques”, e sobre o seu possível regresso ao território português.

O urso-pardo (Ursus arctus) é um animal bastante adaptável, que sobrevive numa grande variedade de climas e diferentes tipos de habitat. Por isso, as dimensões e comportamento variam consoante as subespécies: alguns dos maiores ursos habitam a Ilha de Kodiak, no Alaska e na Península de Kamchatka, na Rússia; alguns dos mais pequenos as Montanhas do Centro de Itália e Norte de Espanha (1).

Os ursos em regiões mais frias tendem a ser maiores do que ursos que habitam regiões mais temperadas. Ursos em regiões frias hibernam, ursos em lugares mais temperados podem não hibernar (2). Nas populações do Sul da Europa, os machos podem pesar 180 quilos e as fêmeas 130 quilos, em quatro patas podem medir cerca de um metro de altura e dois metros de comprimento e podem viver entre 25 a 30 anos (3).

No passado, o urso-pardo tinha uma grande distribuição, desde as montanhas do Atlas com vista para o deserto no Norte de África, até às florestas densas com vista para os fiordes do Báltico, passando pelo Médio Oriente e Himalaias até à América do Norte (4). Cruzando desertos, terras altas, florestas húmidas, zonas costeiras e planícies interiores. 

Urso-pardo do estado do Alasca, nos EUA. Foto: Forest Service Alaska Region, USDA from Juneau, Alaska, USA

Na Península Ibérica era comum desde as montanhas frias e chuvosas do norte da Península, até às planícies quentes e secas do Alentejo e da Andaluzia (5). Deixou marcas na cultura: o símbolo de Madrid, a capital espanhola, é um urso a comer medronhos, ou ainda as silhas, os muros apiários no Gerês e, em menor escala, noutras partes do país (6).

Na toponímia, ficaram nomes de localidades e lugares como o Vale da Ursa na Malcata, Pia do Urso na Serra de Aire e Candeeiros ou Vale de Urso em Proença-a-Nova. Nos contos reais, reza a lenda que D. Dinis caçou um urso perto de Beja, no século XIII (7).

Existiram ursos na Serra da Arrábida que provavelmente comiam marisco, nos Montes Algarvios talvez alfarroba e figo e, no Minho, é provável que o alimento incluísse peixe, como os salmões (8). No século XV ainda existiam ursos ao longo da Raia, no vale e planalto do Côa e nas colinas e campos de Moura no Alentejo (9).

Urso-pardo da região da Cantábria, norte de Espanha. Foto: neusitas/Wiki Commons

A perda, destruição e simplificação de habitat e a caça levaram à quase extinção do urso na Península Ibérica e ao desaparecimento deste animal de grandes partes da sua distribuição histórica. Mas hoje, graças ao abandono de terras agrícolas marginais, à concentração de pessoas em cidades e medidas de restauro e proteção da natureza, há oportunidades para o urso recuperar territórios antigos (10). 

Nas regiões de clima mediterrâneo, o urso tem uma dieta variada que muda consoante a estação do ano (11). Alimenta-se de frutos frescos como cerejas, figos, medronhos, mostajos, abrunhos, pêras e maçãs bravas; bagas de arbustos, do sabugueiro, do aderno e do pilriteiro; frutos secos como bolotas, nozes, castanhas e avelãs; insetos, formigas e térmitas; mel, ervas e em algumas ocasiões também carne (12).

Há duas maneiras de o urso voltar a Portugal. Ou através da reintrodução de animais vindo de outros locais, como aconteceu nos Pirinéus, mais rápida mas mais desafiante socialmente (13), ou através de expansão natural, mais lenta mas mais aceite pela comunidades, como tem vindo a acontecer na Cantábria (14).

Em ambas é preciso preparar zonas core, para o urso habitar, e corredores para ligar populações existentes e garantir novas áreas de expansão. O urso precisa de espaço, zonas tranquilas onde possa viver sem ser perturbado, o que garante habitat para muitas outras espécies de animais e plantas. Na Cantábria o habitat de urso alberga populações de lobos, abutres e várias espécies de herbívoros (15). 

Para promover a expansão natural, é preciso criar corredores ecológicos através de ações como remover vedações e arame farpado, criar passagens em infraestruturas como estradas e linhas de comboio e ainda plantar árvores de fruto ao longo dos corredores, para incentivar os ursos a usarem as novas passagens (16).

Para criar zonas core para a vida selvagem, na Galiza e no Norte de Portugal, é imperativo trabalhar com as comunidades locais, uma vez que o Estado em ambas as regiões não tem propriedades próprias com área suficiente para albergar uma população viável de urso.

As maiores áreas estão nas mãos das comunidades locais, na forma de baldios, pelo que para o urso se estabelecer no Norte de Portugal esses baldios são m aspeto chave. Por norma, são terras pouco produtivas mas que para a conservação da natureza são boas. É uma oportunidade para criar um incentivo económico direto à presença do urso, através do aluguer de baldios por várias dezenas de anos para a conservação da natureza (17).

Trabalhar a coexistência com as comunidades locais para prevenir conflitos é fundamental – com os apicultores para proteger colmeias, com os agricultores de frutas para proteger pomares e com as pequenas explorações agrícolas por causa de hortas e galinheiros. Por exemplo, dar a conhecer o urso às populações que partilham o território com este animal com eventos de sensibilização, reforçar contentores e caixotes do lixo para evitar o acesso, apostar na educação ambiental e criar uma imagem positiva do urso como uma oportunidade e não como um problema (18).

O urso é um dos grande cinco big five animais da Península Ibérica (19), um animal carismático, um símbolo de um ecossistema saudável e selvagem. Pode ser usado como solo fértil para o desenvolvimento económico local e para o turismo de natureza (20).

É o grande “jardineiro dos bosques”, pois dispersa sementes de árvores e arbustos, o que aumenta a disponibilidade de alimento para muitas outras espécies de animais (21). É ainda uma das vinte espécies identificadas como chaves para restaurar cadeias tróficas um pouco por todo o mundo, pelo seu papel no ecossistema (22).  

Em Portugal pode voltar a Montesinho e às serras da Peneda e Gerês, áreas que alguns animais já visitaram vindos do Norte de Espanha, mas onde ainda não se estabeleceram. No futuro pode usar os afluentes do Douro para chegar a novas áreas através do Sabor e do Côa, para chegar ao Sistema Central, às Serras da Estrela, do Açor, da Lousã, da Gardunha e da Malcata, até usar os afluentes do Tejo para chegar a São Mamede. 

O urso pode (e irá) voltar a Portugal, resta perguntar quando. E mais importante, o que será feito para preparar a chegada deste belo e carismático animal? 


Leia aqui outros artigos do mesmo autor sobre o regresso das espécies extintas a Portugal.

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