Foto: Pedro Pina

Depois da chuva, que cheiro é este que sentimos a terra molhada?

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António Gomes da Costa, bioquímico e comunicador de ciência, explica-nos qual é a curiosa origem deste aroma tão característico.

Chove e apercebemos-nos de um odor inconfundível que paira no ar, mas o que provoca afinal esse cheiro e porque é que o identificamos de forma tão imediata? António Gomes da Costa, especialista em comunicação de ciência ligado à Gulbenkian Cultura, nota que a procura de explicações para este enigma começou num passado distante. Já Plínio o Velho, um naturalista da Roma Antiga nascido há cerca de 2000 anos, identificava esse aroma da terra molhada como o resultado da “respiração do Sol e da Terra”.

Apesar do interesse que despertava, foi só em 1964 que o mistério foi finalmente desvendado graças ao trabalho de dois cientistas australianos, Isabel Joy Bear e Richard G. Thomas, que decidiram descobrir qual seria a origem do fenómeno. Os dois “mostraram que se deve a compostos libertados pelas rochas e solos quando molhados pela água da chuva. Deram-lhe o nome de Petricor, a partir do grego “petri” = rocha + e “ichor”, nome dado na mitologia grega ao sangue etéreo dos deuses”, explica António Gomes da Costa.

Os dois cientistas demonstraram que a origem deste cheiro é “claramente biológica”: na sua origem está um composto orgânico batizado de geosmina, produzido em grande parte por microrganismos do género Streptomyces (ou streptomicetos). Esta geosmina, que se acumula no solo em períodos de seca e é depois libertada quando cai a chuva, não é todavia a única responsável. Os streptomicetos produzem igualmente outras substâncias identificadas por Isabel Bear e Richard Thomas, isopropyl metoxipirazina e metil-isoborneol, que contribuem para esse odor.

Foto: Andychoinski/Pixabay

Quanto à geosmina, por sua vez, não é produzida apenas pelos streptomicetos. Esse papel, acrescenta o mesmo responsável, é desempenhado também pelas “cianobactérias, algumas algas e musgos, a beterraba, alguns fungos e milípedes”. As batatas e ervilhas, aliás, produzem também pirazina. “Não é de admirar que muitas vezes associemos o aroma de ervilhas e batatas a um ‘cheiro a terra’. E essa afirmação ainda é mais notória quando falamos de beterraba!”

Existem outras curiosidades associadas ao petricor. Embora este odor seja reconhecível em qualquer lado do mundo, pois os seus compostos químicos são comuns, não será sempre sentido de forma exatamente igual. “Como qualquer ‘perfume’, o que o nosso nariz deteta é o conjunto de compostos voláteis que se desprende da terra molhada, e que inclui óleos vegetais libertados por folhas e outros compostos produzidos por seres vivos, como fungos, que diferem entre diferentes terrenos e zonas geográficas.”

António Gomes da Costa compara essas variações com o que acontece, por exemplo, com o aroma também inconfundível do chocolate. Sabemos sempre do que se trata, mas o aroma pode ser muito diferente, dependendo do que estiver misturado com o cacau: baunilha, ou avelãs, ou outros ingredientes.

O resultado único da trovoada

Também a trovoada pode influenciar – e muito – o cheiro que sentimos após uma chuvada. O ozono, por vezes produzido durante as descargas elétricas dos relâmpagos, possui um aroma muito próprio que conduz a um resultado “único” quando se une com o odor a geosminas, explica este bioquímico, que enumera ainda outras características das trovoadas que provocam um odor singular a terra molhada.

Foto: diegotankograd/Pixabay

Em primeiro lugar, estas acontecem muitas vezes em períodos de calor e após períodos de seca, quando já se acumularam muitas geosminas no solo, e dessa forma libertam-se muitos desses compostos aromáticos quando a chuva cai. Essas descargas elétricas são igualmente acompanhadas, em muitos momentos, por chuvadas curtas e fortes, que se despenham em grossos pingos de água. “Isto é o ideal para a chuva penetrar no solo e libertar os compostos aromáticos, e a intensidade e tamanho das gotas de água vai provocar uma grande agitação ao nível do solo e provocar aerossóis carregados de compostos aromáticos; por fim, a duração curta significa que esses aerossóis se podem espalhar e permanecer durante longo tempo no ar.”

Somos super detetores de geosminas

António Gomes da Costa nota ainda que os humanos são “particularmente sensíveis” ao aroma das geosminas, uma vez que temos a capacidade de “detetar a sua presença em quantidades extremamente pequenas, de cinco partes por trilião”. Os cientistas não têm ainda certezas sobre quais serão as causas da nossa forte sensibilidade, mas desconfiam que pode estar relacionada com segurança. É que “as geosminas podem aparecer em alimentos onde microrganismos estão a desenvolverem-se em quantidade e que, portanto, podem estar impróprios para consumo.”

Em contrapartida, lembra o mesmo responsável, “há sem dúvida uma sensibilidade muito grande ao aspeto mais agradável desta substância, o tal cheiro a terra molhada, que pode ser devido a uma relação desenvolvida culturalmente que nos permite identificar uma terra ‘saudável’, ou presença de água após períodos de seca.”

Foto: Paula Côrte-Real

Ainda assim, não somos os únicos seres sensíveis ao odor das geosminas, que são detetadas por alguns insetos, sabem hoje os cientistas. O cheiro repele algumas espécies, como acontece com as abelhas, “possivelmente porque este composto sinaliza microrganismos potencialmente perigosos”; já alguns mosquitos parecem ficar atraídos, o que poderá dever-se ao facto de se tratar de um sinal de presença de água.

Da próxima vez que se deparar com uma chuvada inesperada e sentir o aroma inesquecível da terra molhada, lembre-se de que este fenómeno aparentemente tão simples e primaveril contém em si o reflexo de um mundo microscópico e singular, complexo e fascinante, que para a ciência tem sido uma fonte de novas perguntas e conhecimentos.


A série Ciência no Jardim é publicada em parceria com o Jardim Gulbenkian.


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