Paulo Catry, biólogo, tem passado os últimos dias em trabalho longe da internet e de quase tudo, rodeado por albatrozes, pinguins, lobos e leões-marinhos, baleias. Uma visita regular que “é paixão para a vida”, diz-nos ele, transportando-nos consigo.
Steeple Jason, Falkland/Malvinas, Dezembro 2022
O vento, neste meu paraíso, chega a ter a viscosidade sólida do vidro. Volta e meia uma rajada mais forte pega na casa, abana-a, aperta-a, as paredes rangem e gemem. Por momentos, a satisfação do conforto do interior torna-se num sobressalto, será que a estrutura de madeira aguenta?… mas logo se abre a mão eólica e volta o prazer da tempestade.
O fim do mundo é aqui, nesta casa isolada numa pequena reentrância ligeiramente abrigada, por sobre os rochedos do mar. A moradia mais próxima está numa ilha a 60 km, também ela isolada e distante da outra a seguir. A vila mais cercana, com uns dois mil habitantes, fica a 250 km e, depois disso, muito mais longe, só a costa da Patagónia argentina.
Grupo das Jason, no noroeste do arquipélago das Malvinas/Falkland. Não faltam ilhas por aqui, algumas centenas no total do arquipélago, apenas uma dezena delas habitada por humanos, as restantes pejadas de vida selvagem. Motivos mais que suficientes para se lhes dedicar décadas de trabalho. Já estou nos 20 anos de visitas regulares a estas paragens e para já não tenho planos de as descontinuar. É paixão para a vida.
Em New Island (também nas Falkland) fiz-me pastor de albatrozes. Marquei várias centenas com anilhas de código único e fui pacientemente seguindo-lhes as vidas. De início sozinho, depois tornou-se um trabalho de equipa. Continuamos a marcar novas aves cada ano, gerações que se sucedem. Vivem longamente. Há um caso conhecido de um albatroz no Havai a nidificar aos 70 anos de idade, os daqui das Falkland ainda não são estudados há tanto tempo assim.
Este ano a estadia é nas ilhas Jason. Primeiro uma semana a acampar em Grand Jason (com a tenda bem abrigada entre os pedestais de “tussock”, uma gramínea quase arbórea que abunda por estas latitudes) e depois duas semanas nesta casa de Steeple Jason. No acampamento, pior que o frio foram as pulgas da colónia de pinguins.
Steeple Jason tem aquela que é certamente uma das colónias de aves marinhas mais espetaculares do mundo: 200.000 casais de albatrozes-de-sobrancelha e talvez perto de uns 100.000 casais de pinguins (3 espécies), isto para além de corvos-marinhos, moleiros, gaivotas, garajaus, patos-marinhos, ostraceiros e vários pequenos painhos, pardelões e afins.
Pelos rochedos do litoral há milhares de lobos marinhos (otárias) e alguns leões-marinhos. Estes últimos, embora se alimentem sobretudo de peixes e de cefalópodes, também predam pinguins, o que não pode deixar de causar um desconforto à vista. Reconhecemo-nos no caminhar vertical e nos comportamentos sociais destes parentes na aparência, custa ver-lhes o sofrimento e o fim.
No mar, quando o tempo acalma um pouco, observam-se dorsos e barbatanas de baleias e golfinhos. As baleias-sardinheiras são particularmente numerosas, por vezes chega a ver-se uma meia centena de passagem ao longo de uma tarde de observação a partir de algumas destas ilhas.
Agora voltou o vento, com uma intensidade tremenda o dia todo, continua no dia seguinte. Afeta o trabalho, cancela travessias de barco e voos de avioneta. Só não cancela as viagens das aves. Hoje pouco mais posso fazer do que espreitá-las pela janela. Confirmar o prodígio dos albatrozes e de outros planadores marinhos. Sem bater às asas, avançam contra o vento forte sobre o mar de tempestade, ziguezagueiam por entre um turbilhão de equações da aerodinâmica e progridem mesmo, milagrosamente, a bom ritmo. Os que vão em sentido oposto, a favor das rajadas, voam a uma velocidade alucinante, num movimento ondulante e completamente relaxado*.
No último dia passa a tempestade, mas o vento mantém-se rijo. Depois de muitos quilómetros de marcha, detenho-me num ponto aleatório de uma encosta com vista para o mar, afastado do frenesim das colónias de aves e focas. Deito-me no meio de espigas maduras de erva-lanar que ondulam em sintonia frente às vagas marinhas. Cara tapada com o chapéu, fecho os olhos por um momento, dormito bem agasalhado e quente ao sol, mesmo se exposto à aragem fria. Mar e erva, som do vento e da ondulação distante, um ocasional chamamento longínquo de uma petinha. Há algo de mágico na paz de um ponto aleatoriamente escolhido, a terminar três semanas sem internet, sem convulsões planetárias, sem sobressaltos nem burocracias. Três semanas de sonhos de vida antiga eternamente renovada, de asas, patas, penas, barbatanas, de líquenes pujantes sobre as rochas erodidas.
Quando reabro os olhos fico momentaneamente ofuscado pela luz. Oceano coberto de farrapos brancos de espuma, de cristas e de estrias. Alguns pontos em movimento, albatrozes que abraçam o vento, vão já tão distantes e divagantes que não tiram nem acrescentam nada à solidão perfeita do mar revolto e aparentemente vazio. Silêncio a perder de vista.
* Estudos que utilizaram aparelhos de medição do ritmo cardíaco indicam que este voo planado é mesmo descontraído e relaxado, sem grande esforço para os albatrozes: Weimerskirch et al. 2000, Proc R Soc B
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.