Foto: Paulo Catry

Crónicas naturais: a ilha das tartarugas

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Paulo Catry desembarca na ilha das tartarugas, em plena época de reprodução. À noite, vai contá-las, medi-las, conhecê-las melhor. “Tantas vezes enquanto trabalhamos somos abalroados por grandes fêmeas em movimento ou cercados por tartaruguinhas desorientadas”, escreve este biólogo a partir da Guiné-Bissau.

Guiné-Bissau, agosto 2023

Segundo cosmogonias de diversos povos, o mundo está assente no dorso de uma grande tartaruga. Este nosso pequeno mundo, o Parque Nacional Marinho de João Vieira e Poilão (PNMJVP), na parte sul do arquipélago dos Bijagós, é seguramente assim, sustentado por uma das maiores populações de tartarugas-verdes Chelonia mydas existentes. As tartarugas são a principal razão da criação do parque e do seu continuado financiamento e funcionamento. E colocam a Guiné-Bissau no mapa ou, pelo menos, em certas cartografias da biodiversidade. 

Após quase um dia de navegação desde Bissau, com paragens em três ilhas, chegamos a Poilão, onde vamos permanecer para, com os nossos parceiros do IBAP (Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas), continuarmos trabalhos de monitorização e pesquisa.

A ilha de Poilão, onde chegam a desovar 2000 tartarugas numa única noite. Foto: IBAP / en Haut

Se à distância Poilão passa por ilha tropical idílica, à chegada a praia parece antes um cenário de conflito e destruição. À maré alta, não há um palmo de areia lisa e aprazível. Crateras sucedem-se umas às outras, rastos de tartaruga como rodados de alguma pequena máquina agrícola, restos de ovos estragados ou eclodidos por toda a parte, ocasionais cadáveres de tartaruguinhas recém-nascidas, tudo inevitavelmente composto por algum lixo marinho. Na orla da praia, as tartarugas, nas suas escavações, vão desenterrando ervas e arbustos, até árvores acabam por cair. A paisagem é a de um campo de batalha, da batalha de uma vida em intensidade máxima. E em reprodução.

Tozé Pires (o diretor do PNMJVP) recebe-nos com um sorriso e uma informação: “esta noite contámos 1130”. A praia tem pouco mais de dois quilómetros de comprido e neste mês de agosto cada noite sobem mais de mil tartarugas para desovar, às vezes duas mil. Até a simples contagem é um desafio. 

Descarregamos água e bagagens e vamos montar as tendas sob os telheiros de palha e lona antes que escureça. A embarcação que nos trouxe regressa de pronto a Bubaque, não há ancoradouro seguro em Poilão. Jantamos cedo, arroz com peixe pescado aqui mesmo pela equipa de vigilância e monitorização. O trabalho começa logo após o anoitecer.

As atividades de escavação das tartarugas têm impacto na própria vegetação. Foto: Paulo Catry

Laboramos com luz vermelha, que assusta menos as tartarugas e não seduz tanto as recém-nascidas. Estas são fortemente atraídas por qualquer lanterna ou outra iluminação artificial, perdendo a noção do caminho do mar. Medições, marcações, colheitas de amostra; tantas vezes enquanto trabalhamos somos abalroados por grandes fêmeas em movimento ou cercados por tartaruguinhas desorientadas. Outras vezes cai sobre nós uma chuva de areia das mães que escavam em redor. Não há pontos de calmaria neste mar de tartarugas.

Poilão é, desde que há memória, uma ilha sagrada para o povo bijagó. Só homens adultos, com o fanado feito, vindos da tabanca de Ambeno (em Canhabaque) podem aqui por os pés em ocasiões especiais. A ilha habitada mais próxima está a 30 quilómetros. Mas maior que o receio da travessia terá sido, ao longo dos tempos, o medo de aqui chegar. Os irãs e as mandjiduras1, o isolamento místico, talvez mais do que o geográfico, protegeu a ilha e as suas tartarugas marinhas.

Praia coberta de rastos de tartarugas. Foto: French Connections Films

De dia a praia fica quase deserta, mas há um bando de pilritos que procuram invertebrados na areia da rebentação entre o vai e vem de duas ondas. Também aproveitam restos de ovos de tartarugas parcialmente comidos por corvos ou por varanos, ou esmagados por outras tartarugas. 

Na maré-baixa, Poilão fica quase completamente rodeada por uma cintura de rochas onde os maçaricos-galegos defendem territórios contíguos. Para as tartarugas é um obstáculo quase intransponível. A maioria passa nadando sobre esta faixa, subindo a praia à maré-cheia para desovar. No momento de regresso ao mar, cerca de duas horas mais tarde, muitas são confrontadas com os maçaricos de novo instalados nos seus minifúndios de pedra vermelho-escura. O caminho está vedado. Resta-lhes procurar uma poça de maré onde descansar e esperar que a água volte a subir. Algumas não têm o privilégio de acesso a salão VIP em forma de piscina e ficam simplesmente a seco. Felizmente chove nesta época. Se ficarem expostas ao sol demasiado tempo acabam por morrer antes do regresso das ondas salvadoras. 

Tartarugas aguardando pelo regresso da maré alta. Foto: Paulo Catry

Poilão, enquanto sítio eleito pelas tartarugas, foi descoberto para a Ciência em 1990, durante uma visita curta de um canadiano, Benoit Limoges, que trabalhava no arquipélago, acompanhado de um bijagó de Orango, o Honório Pereira. Em meados dessa década fizeram-se as primeiras campanhas de estudo, levadas a cabo por técnicos guineenses de várias instituições, focadas sobretudo na medição e marcação com anilhas. Foi desde logo evidente que a ilha era um local importante para as tartarugas-verdes (com presença também de algumas tartarugas-de-pente Eretmochelys imbricata). Foi só no ano 2000 que, em parceria com o Castro Barbosa, biólogo guineense formado na União Soviética, coordenei o primeiro censo de tartarugas na ilha. Durante os 5 meses de trabalho de campo registaram-se mais de 7000 posturas, colocando Poilão, à época, entre os 6-7 locais mais importantes do mundo para esta espécie.

Mas desde aí que a monitorização anual indicou, para surpresa de todos, uma população em franco crescimento, apesar das flutuações anuais típicas. Em 2020, entre julho e novembro, foram depositadas cerca de 60.000 posturas na ilha. Este ano há mais ainda. Poilão é atualmente o 3º ou 4º local do mundo com mais tartarugas-verdes a desovar.

Ainda que predominantemente noturnas na praia, algumas tartarugas escavam os ninhos durante a manhã. Foto: Paulo Catry

A costa da África ocidental é das mais pescadas de todos os oceanos, com dezenas de milhares de embarcações ativas, muitas das quais usando redes que a qualquer momento podem capturar uma tartaruga. Basta passear numa praia da Mauritânia ou do Senegal (onde a maioria das tartarugas adultas de Poilão se alimentam) para se encontrarem carapaças de tartarugas que morreram e vieram dar à praia. Muitas vezes os cadáveres são recentes e mostram ainda marcas de linhas ou de redes de pesca, causa principal de mortalidade nos nossos dias.

Como conciliar esta e outras ameaças crescentes com uma população de tartarugas-verdes abundante e em franco crescimento? Será que sonhámos, fantasiando mortalidades, ou imaginando antes rastos fictícios nas praias? Certamente que não, aliás há outras populações de tartarugas, como as tartarugas-comuns Caretta caretta de Cabo Verde, que estão a passar por um processo semelhante.

Na verdade, a razão deste fenómeno não está bem estabelecida pela Ciência, da qual as tartarugas passam boa parte da vida escondidas. Claro que os esforços e conservação têm dado dividendos, mas não podem explicar tudo (as tartarugas levam mais de 20 anos a tornarem-se adultas e os esforços de conservação mais ativos por estas bandas são de apenas duas décadas). Há várias outras hipóteses não verificáveis, mas parece-me que a mais provável tem, também ela, ligações à pesca e ao desaparecimento dos predadores naturais das tartarugas.

Foto: Paulo Catry

É difícil imaginar um ser marinho mais vulnerável à predação do que uma tartaruguinha nas primeiras semanas ou meses de vida. Lentas, carapaça ainda frágil, apetitosas. Qualquer peixe de médio ou grande porte faz delas um petisco. Grandes tubarões, como os tubarões-tigre, capturam até tartarugas já adultas. Mas cada vez há menos tubarões e outros peixes predadores no mar, a sobrepesca é uma realidade global, até no alto-mar, onde as tartaruguinhas passam os primeiros anos de vida. Assim, é provável que a taxa de sobrevivência das tartarugas jovens tenha aumentado, o que compensa a mortalidade causada mais tarde pelas pescas nas zonas costeiras, para onde as tartarugas migram quando têm uns dois palmos de comprimento de carapaça. Sobram tantas tartarugas que, apesar dos impactos humanos, a população continua a crescer, pelo menos por agora. 

Um pescador já idoso da ilha de Uracane contou-me que dantes tinham medo de nadar no mar. Recordou como no tempo colonial os tubarões-tigres que se pescavam chegavam a ter que ser puxados de trator para fora de água na rampa de Bubaque, tão grandes que eram. Lembra-se de uma fêmea em particular, com uma trintena de embriões no ventre, cada um com uns 5 quilos! Hoje as crianças nadam sem medo nas praias do arquipélago (ainda que os tubarões não tenham desaparecido completamente).

Com todas as mudanças há ganhadores e perdedores (ultimamente parece haver muito mais destes últimos…), e depois muda a maré e a sorte vira. 

Regresso ao mar depois da desova. Foto: Paulo Catry

Seja qual for o fator preponderante no seu atual crescimento populacional, a verdade é que as tartarugas marinhas estão bem protegidas em Poilão e nas outras ilhas do PNMJVP. A Guiné-Bissau, com a sua grande superfície de Áreas Marinhas Protegidas, geridas com muitos constrangimentos, de forma imperfeita, mas mesmo assim geridas e algo protegidas, pode dar lições de conservação marinha a muitos países do mundo (incluindo a vários daqueles que se julgam na vanguarda de um qualquer pelotão dianteiro cuja navegação, está bem à vista, se afigura cada vez mais arriscada). Num ambiente global em convulsões crescentes, até ver, as tartarugas-verdes dos Bijagós estão na mó de cima.

1 tabus


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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