Carvalhos relíquia, águias, lontras, peixes de rio, escaravelhos, borboletas e flores fazem da Serra de Monchique um hotspot para a natureza. Nelson Fonseca, naturalista local que conhece a serra como poucos, ajuda-nos a perceber por que razão esta região é tão importante no país e na Europa.
Quando falamos ao telefone com Nelson Fonseca, 38 anos e arquitecto paisagista de Portimão, já terão ardido cerca de 20.000 hectares da Serra de Monchique. As chamas alastram-se para a Serra de Silves, impulsionadas pelo vento forte. No terreno estão mais de 1.200 operacionais, apoiados por 375 veículos e 19 meios aéreos.
Há vários anos que Nelson Fonseca percorre a Serra de Monchique, na pele de um “naturalista curioso, à procura plantas e insectos”. Nas últimas horas, tem visto na televisão as chamas chegar a muitos dos locais que conhece.
“Ontem à noite vi que o fogo passou pelo troço da ribeira de Boina, em Caldas de Monchique, que é o único local conhecido em Portugal onde a libélula Zygonyx torridus se reproduz. E se o local de reprodução desta libélula não ardeu, ardeu o sítio onde caça e se alimenta”, contou esta tarde à Wilder.
A Serra é também a casa para inúmeras outras espécies de insectos que, abrigadas neste cantinho com condições climáticas diferentes do resto do Sul do país, se foram diferenciando e hoje serão sub-espécies ou mesmo espécies endémicas.
Monchique – serra cujo ponto mais elevado, a Fóia, tem 902 metros de altitude – “é uma ilha ecológica com uma dimensão relativamente grande, com altitude e com humidade superior à envolvente, pela sua proximidade do mar”, explicou Nelson Fonseca. Há várias espécies que “acabam por se desenvolver em subespécies”. Tal é o caso de um bicho-pau e de um saltão, que só existem na zona da Fóia.
A importância de Monchique é reconhecida à escala europeia, com 76.000 hectares classificados como Rede Natura 2000 e como IBA terrestre (Important Bird Area), esta última pela federação internacional Birdlife, da qual faz parte a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (Spea).
Na serra ocorrem espécies prioritárias para a Europa. Como a borboleta nocturna Callimorpha quadripunctaria, em voo nesta altura do ano. “Ainda nunca vi essa borboleta mas sei que já foi observada junto a algumas das linhas de água da serra”, comentou Nelson Fonseca.
Monchique é também especialmente importante para as aves de rapinas, tanto diurnas como nocturnas. “Ali ocorrem os poucos casais de açores (Accipiter gentilis) do Algarve”, salientou. Além disso, a serra tem um dos núcleos populacionais mais importantes do país de águia-de-Bonelli (Hieraaetus fasciatus). Naquela serra, estas águias fazem ninho em árvores de grande porte.
De acordo com a informação referente à IBA, “este local reúne ainda habitats apropriados para a nidificação de águia-cobreira (Circaetus gallicus) e de bufo-real (Bubo bubo), este com locais de nidificação na Ribeira de Odelouca, por exemplo”.
A área ocidental da serra pode ser zona de passagem para espécies planadoras e de passeriformes migradores, como o melro-das-rochas que, segundo Nelson Fonseca, é um visitante regular na Fóia no Outono.
Nelson Fonseca lembrou ainda os lagartos-de-água (Lacerta schreiberi), as lontras (Lutra lutra) e a boga-do-Sudoeste (Chondrostoma almacai), espécie que só existe nas bacias dos rios Mira e Arade.
No mundo da Botânica, a serra tem uma vegetação única. Entre este património natural estão os adelferais (Rhododendron ponticum), os zimbrais, medronhais, urzes, a flor Centaurea fraylensis – um endemismo lusitano – e bosquetes de loureiros (Laurus nobilis), amieiros (Alnus glutinosa), freixos (Fraxinus angustifolia), carvalho-português (Quercus faginea), carvalho de Monchique (Quercus canariensis), castanheiros (Castanea sativa), salgueiros-brancos (Salix alba), choupos-brancos (Populus alba), sobreiros (Quercus suber) e azinheiras (Quercus rotundifolia).
“A Serra só por si é um elemento de biodiversidade extraordinário para o país, tanto ao nível dos insectos como às aves e à flora”, salientou.
E agora?
Nelson Fonseca já pensa em regressar à serra para tomar o pulso aos danos e à resiliência da natureza. Nas suas contas, o fogo poderá destruir entre 25 a 30 mil hectares.
“As espécies das linhas de água serão as menos afectadas. Por exemplo, para a boga-do-Sudoeste, maior ameaça do que o fogo é a poluição das suiniculturas”. As espécies das ribeiras e barrancos “têm alguma mobilidade e os amieiros nas margens ardem pouco”.
“A nossa flora está habituada ao fogo”, disse, salientando que “haverá espécies que até vão beneficiar, com a eliminação da concorrência”, como uma espécie endémica de dente-de-leão. Neste momento, as plantas já não estão em flor; as sementes já estão no solo e na próxima Primavera poderão germinar, gozando da ausência de arbustos, por exemplo.
A maioria das aves de rapina, como o grande bufo-real, já tem as crias com capacidade de voo e capazes de escapar às chamas. “As crias nascem muito cedo, a partir de Janeiro. Hoje, as crias já são quase idênticas aos pais”.
Ainda assim, a curto prazo, as aves de rapina poderão ter mais dificuldades em alimentar-se, com a possível redução das suas presas naturais, como o coelho-bravo. Mas, por outro lado, as perdizes poderão ficar com mais habitat. “Isto não é nada linear. Há muitas vertentes a analisar e a natureza é resiliente. O que é linear é a perda de vidas e de bens. Os maiores danos são sociais”.
Mas há outras espécies que poderão ser mais afectadas. Como os carvalhais e os insectos, como o gafanhoto da Fóia, que não têm grande capacidade de fuga.
Nelson Fonseca acredita que a maioria das espécies de Monchique vai beneficiar ou recuperar relativamente.
O grande problema é a falta de gestão desta área de importância natural. “O plano sectorial da Rede Natura 2000 pouco ou nada trouxe. Não é área protegida nem deixa de ser. Ninguém quer saber e faltam meios”, lamentou. “A gestão activa do património natural não existe.”
No dia-a-dia, o que conta é o “carinho que as pessoas que nasceram e vivem na serra sentem pelo lugar”. “Quando ando a fotografar aves ou à procura de insectos e flores, por vezes as pessoas páram e dão-me dicas dos melhores sítios onde procurar. Eles podem não saber os nomes científicos das espécies, mas sabem mais sobre as suas formas de vida do que muitos especialistas”.