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Cria de lobo-ibérico. Foto: Francisco Álvares

Rede Natura 2000: O que nos falta fazer para pôr fim a mais de 12 anos de incumprimento

14.03.2025

Com apenas seis de um total de 62 Zonas Especiais de Conservação (ZEC) (quase) prontas, Portugal está a tentar acelerar os trabalhos para conservar efectivamente os sítios da Rede Natura 2000 e resolver um processo de infracção no Tribunal de Justiça da União Europeia.

A concretização da Rede Natura 2000 em Portugal deu mais um passo a 10 de Março último, com a aprovação em Conselho de Ministros de cinco decretos-lei que designam as Zonas Especiais de Conservação (ZEC) de Montesinho/Nogueira, de Morais, do Alvão/Marão, da Arrábida/Espichel e de Nisa/Laje da Prata.

A construção desta rede europeia é uma história com muitos capítulos e já dura há cerca de 30 anos.

Neste momento, as atenções estão focadas em dotar todas as 62 ZEC que compõem a Rede Natura 2000 em Portugal dos seus planos de gestão – que definem os objectivos e medidas de conservação adequados para cada ZEC manter ou melhorar a saúde de espécies e habitats -, pondo fim a um incumprimento que já valeu ao país ser levado ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

Isto porque terminou em julho de 2012 o prazo definido pela Comissão Europeia para o Estado português designar oficialmente todas essas ZEC e fazer publicar as Portarias com os respectivos planos de gestão.

“A Comissão Europeia quer planos de gestão em vigor, para haver medidas concretas implementadas”, comentou à Wilder Ana Rita Martins, da Liga para a Protecção da Natureza (LPN).

O atraso na aplicação da lei não tem passado despercebido. A 5 de Setembro de 2019, o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou, através de um acórdão, que Portugal tinha falhado na designação de 61 Sítios de Importância Comunitária (SIC) para passarem a Zonas Especiais de Conservação (ZEC), como exigido na Directiva Habitats, e declarou que o Estado português não tinha adoptado as medidas de conservação necessárias para aqueles sítios (apenas uma ZEC, a do Banco Gorringe, não está incluída neste contencioso).

O acórdão europeu teve resposta do Governo de António Costa, mas que ficou a meio caminho: em 2020, o Estado português designou formalmente os 62 sítios como ZEC, adoptando um decreto regulamentar específico, mas a medida foi considerada insuficiente porque ficaram ainda por adoptar os objectivos e medidas de conservação para cada uma das áreas.

Nesse momento, ficámos com “meio problema resolvido”, diz Ana Rita Martins. Todavia, “para efectivar a conservação é obrigatório publicar os planos de gestão em portaria”, salienta.

Tendo em conta a demora nesse passo final, em Fevereiro de 2024 a Comissão Europeia decidiu instaurar uma acção contra o país no Tribunal de Justiça da União Europeia. Em causa está o facto de Portugal não ter cumprido as exigências do acórdão do tribunal de 5 de Setembro de 2019, que pedia que fossem fixadas as medidas de conservação necessárias para as suas ZEC.

Desta feita, o país incorre no pagamento de multas de vários milhões de euros, a aplicar desde a data do primeiro acórdão do tribunal europeu, há mais de cinco anos, até estar tudo em cumprimento.

E desta vez, houve também já resposta do lado do Governo: no passado dia 6 de Fevereiro, o Governo publicou o primeiro dos 62 decretos-lei, relativo à ZEC de São Mamede.

Passado pouco mais de um mês, a 10 de Março, voltou a dar mais um passo, com a aprovação em Conselho de Ministros de cinco decretos-lei que designam as ZEC de Montesinho/Nogueira, de Morais, do Alvão/Marão, da Arrábida/Espichel e de Nisa/Laje da Prata. “Estes diplomas dotam cada uma das ZEC do regime jurídico próprio e específico de conservação de habitat naturais ou seminaturais e das populações de espécies da flora e da fauna selvagens”, afirma um comunicado do Conselho de Ministros.

Para já, estes cinco decretos-lei não foram ainda publicados em Diário da República, tal como as respetivas portarias com os planos de gestão, mas deverão sê-lo em breve. O mesmo sucede com a portaria relativa ao plano de gestão da ZEC de São Mamede, que continua por publicar. Essas portarias são necessárias para que as novas medidas sejam legalmente regulamentadas.

Maioria das ZEC para aprovar

Para já, o Governo tem pela frente um processo idêntico para mais 55 ZEC: para cada uma, será necessária a entrada em vigor de decretos-lei e portarias com os respetivos planos de gestão, desenhados à medida.

“O ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas) já produziu os planos de gestão, que também já foram a consulta pública. Agora estão a ser afinados e formatados para serem publicados”, disse à Wilder Carlos Albuquerque, até há pouco tempo director do Departamento de Conservação da Natureza e Biodiversidade neste instituto e actual director regional do ICNF para Lisboa e Vale do Tejo.

“Estamos a afinar com a tutela os moldes destes planos, até porque estamos a decidir legislação que afecta ou condiciona a vida em 22% do território nacional”, acrescentou.

Jorge Palmeirim, biólogo e antigo represente português no European Habitat Fórum – grupo de ONGA europeias criado para trabalhar a Rede Natura 2000 -, salienta a importância das medidas de conservação. “Houve uma tentativa anterior de avançar com um regulamento geral para todos os sítios. Mas a Comissão Europeia não aceitou e fez pressão para Portugal dotar cada ZEC com planos de gestão”, contou à Wilder. “Apenas classificar as ZEC não é suficiente, estas têm de estar dotadas de medidas de conservação; só assim conseguimos satisfazer todas as exigências da Comissão Europeia.”

Na opinião de Ana Rita Martins, “é extremamente positivo ver estes planos a ser aprovados”, porque permite “dirigir esforços de conservação e fazer um melhor acompanhamento das actividades”. “É uma boa notícia, peca é por tardia.”

“Os compromissos são para cumprir”

Actualmente, a Rede Natura 2000 ocupa em Portugal 19.521 quilómetros quadrados em área terrestre e 42.436 quilómetros quadrados em área marinha. Isto significa que cobre 21,2% do território.

Esta figura de conservação é formada por ZPE (Zonas de Protecção Especial), previstas na Directiva Aves de 1979, e por SIC (Sítios de Importância Comunitária) que depois passam a ZEC (Zonas Especiais de Conservação), previstas na Directiva Habitats de 1992.

José Pereira, presidente da direção da Palombar – Conservação da Natureza e do Património Rural, disse à Wilder que a Rede Natura 2000 “é importante por trazer um conjunto de medidas de protecção especialmente relevantes nas zonas fora das áreas da Rede Nacional de Áreas Protegidas”. Além disso, “tem permitido disponibilizar financiamento para a conservação de espécies prioritárias, como o abutre-preto ou o tartaranhão-caçador”.

“Os compromissos são para cumprir, não se justifica este atraso. Quanto mais cedo os planos de gestão estiverem no terreno, mais efectiva será a conservação.”

José Pereira acredita que os planos de gestão que estão agora a ser concluídos poderão trazer “mais orientações e mais fiscalização no terreno” para conseguir uma “efectiva gestão do território”. Por exemplo, a ZPE e ZEC dos rios Sabor e Maçãs é uma área “muito importante por ter potencial para ser o maior corredor ecológico de Norte para Sul em Portugal, ligando Montesinho ao Douro Internacional”. Mas, de facto, “há uma total ausência de fiscalização”, o que tem permitido a abertura de caminhos, exploração turística e agrícola e albufeiras que poderão ter impactos nos valores naturais a proteger. “A pressão sobre esta área é enorme”, alerta.

E salienta, por exemplo, que “as alcateias de lobo na envolvência desta zona de Rede Natura 2000 praticamente desapareceram”, apesar de o lobo estar listado nos anexos. “Podemos perguntar: será que se já houvesse um plano de gestão as coisas seriam diferentes para esta espécie, que não está a conseguir ultrapassar as ameaças da falta de alimento, de furtivismo e venenos?”

Segundo o relatório Estado da Natureza na União Europeia, publicado pela Agência Europeia do Ambiente para 2013-2018, a biodiversidade da UE continua a diminuir e a maioria dos 232 tipos de habitats protegidos pela Rede Natura 2000 está em situação de deterioração. O relatório alerta ainda que muitas espécies e habitats na Europa enfrentam um futuro incerto, a menos que sejam tomadas medidas urgentes para inverter a situação.

Portugal enfrenta ainda outro procedimento de infração relativo à Rede Natura 2000, motivado pelas insuficiências na designação de várias espécies e tipos de habitats. Por isso, a Comissão Europeia enviou ao Estado português – e à Polónia e à Roménia, com o mesmo objectivo – uma carta de notificação para completar essas lacunas, em 25 de Julho de 2019, e quase três anos depois um parecer fundamentado, a 19 de Maio de 2022. “Portugal ainda não propôs todos os sítios que devia, incluindo sítios marinhos, e aqueles propostos não cobrem de forma adequada os vários tipos de habitats e as espécies que precisam de protecção”, lembrou a Bruxelas.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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