Esse único momento ocorrido há mais de 3000 anos levou a alterações de DNA que ainda permanecem nos lobos da Península Ibérica, explicaram à Wilder duas investigadoras portuguesas, que lideraram um estudo internacional.
Um estudo publicado esta semana na revista Genome Research conclui que o acasalamento entre um lobo-ibérico (Canis lupus signatus) e um cão (Canis familiaris), e os descendentes que nasceram dessa hibridação entre as duas espécies, terão deixado marcas que perduram até hoje, ajudando os lobos da Península Ibérica a sobreviver em paisagens altamente humanizadas.
Em causa está um pedaço de DNA de cão resultante dessa hibridação com mais de 3000 anos, que perdura ainda no genoma do lobo-ibérico, levando a que esta subespécie de lobo presente em Portugal e Espanha tenha uma assinatura genética única.
Para chegar a essa conclusão, uma equipa de 14 investigadores liderada pelo Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (BIOPOLIS-CIBIO, da Universidade do Porto) analisou o genoma de centenas de lobos-ibéricos, lobos euroasiáticos e da América do Norte, e ainda de cães. O resultado foi a deteção de um pequeno bloco de DNA de cão no cromossoma 2 do lobo-ibérico, na região do MAST4 – nome pelo qual é conhecido um gene associado a alterações cognitivas e de comportamento em mamíferos.
“A nossa hipótese é este gene ter impacto no desenvolvimento cognitivo do lobo-ibérico, fazendo-o reter em idade adulta comportamentos típicos de lobos juvenis, como a ausência de movimentos de dispersão de longa distância”, afirmam Raquel Godinho e Diana Lobo, investigadoras do BIOPOLIS-CIBIO que lideraram este estudo.
Ao contrário de outros lobos que percorrem longas distâncias em busca de novos territórios, os lobos da Península Ibérica muitas vezes nem dispersam, ou apenas por poucos quilómetros. Essa diferença de comportamentos – descrita pela primeira vez em 2018 pela equipa ligada à Universidade do Porto – pode ter sido um dos fatores decisivos para a sobrevivência desse predador. Isto porque quando percorrem centenas ou mesmo milhares de quilómetros, os lobos ficam mais vulneráveis.
De facto, ao contrário do que sucedeu em muitos outros países europeus, tanto em Portugal como em Espanha a espécie nunca chegou a desaparecer totalmente. Isto apesar de os lobos serem fortemente perseguidos e de viverem num território muito humanizado, de onde quase desapareceram na década de 1970. Mesmo hoje, este predador de topo continua a enfrentar grandes desafios em território português e a necessitar de mais medidas de conservação, como revelou o último censo.
Questionando-se sobre as origens desta resiliência do lobo-ibérico, que desde há 10.000 anos está isolado geneticamente na Península Ibérica, já há algum tempo que os investigadores começaram a colocar a possibilidade de tal estar associado a eventos de hibridação antiga com cães. A resposta começa a tomar forma.
Um momento único
No que respeita ao pedaço de DNA agora identificado, essa alteração no genoma teve origem num único momento, explicaram à Wilder as investigadoras que lideraram o novo estudo. “A alta similaridade genética deste bloco de DNA nos lobos-ibéricos leva-nos a crer que a sua introdução decorreu de um evento único de hibridação (acasalamento)”, disseram Raquel Godinho e Diana Lobo. “Nas gerações imediatamente seguintes, este bloco de DNA de cão estaria presente em baixa frequência na população de lobo, mas depois foi aumentando por seleção natural”, uma vez que permitiu aos lobos que o herdaram terem vantagens relativamente aos restantes, indicaram.
Através da análise dos genomas, a equipa conseguiu situar este momento decisivo há entre 3000 a 6100 anos atrás, numa época de grandes alterações na Península Ibérica, quando começaram a surgir aglomerados humanos mais estáveis e a agricultura e pastorícia se tornaram mais frequentes. “Estas condições foram certamente favoráveis a um aumento da presença de cães junto das comunidades, o que associado à destruição do habitat natural do lobo, pode ter levado a uma maior probabilidade de cruzamento entre as duas espécies”, descreveram as investigadoras. “Este período foi também caracterizado por alterações climáticas abruptas na Península Ibérica, o que pode ter afetado a estabilidade e dinâmica das alcateias, facilitando eventos de hibridação com cães.”
No âmbito do mesmo estudo, nem todos os genomas analisados continham este pedaço de DNA de cão: este foi detetado em 43% da população de lobo, com base nas análises de genomas completos. Isso leva a equipa a considerar que haverá outros fatores ecológicos e sociais, incluindo a elevada pressão humana, que podem estar a contribuir para a ausência de movimentos dispersivos de longa distância – um comportamento singular dos lobos da Península Ibérica.
Para já, afirmaram ainda Raquel Godinho e Diana Lobo, a equipa de investigadores continua a estudar à lupa o genoma do lobo-ibérico. O objetivo é descobrir que outros genes podem estar a contribuir para a adaptação desta subespécie aos muitos perigos que enfrenta nos locais em que vive e também a que funções e características correspondem cada um desses genes.