Os resultados do primeiro Livro dos Invertebrados de Portugal Continental foram apresentados esta terça-feira em Lisboa, ao final do dia. Cientistas alertam para a necessidade urgente de medidas que protejam habitats e espécies.
Espécies como o gafanhoto-cantor-de-palpos-negros (Stenobothrus grammicus), a aranha-cavernícola-do-frade (Anapistula ataecina) ou a libelinha lestes-de-montesinho (Lestes sponsa) estão Criticamente em Perigo de extinção em Portugal. São alguns dos 201 animais invertebrados (caracterizados pela ausência de coluna vertebral) que se sabe hoje que estão ameaçados, graças ao projecto do primeiro Livro Vermelho dos Invertebrados.
Aranhas, caracóis e lesmas, borboletas, moscas, abelhas e vespas, formigas e escaravelhos, crustáceos de água doce e mexilhões-de-rio foram alguns dos muitos grupos de animais cujo risco de extinção foi avaliado ao longo deste projecto iniciado em 2019, num total de 865 espécies, com base nos critérios e classificações definidos pela União Internacional para a Conservação da Natureza. Ao longo de vários anos, o projecto envolveu mais de 30 entidades, entre universidades, centros de investigação e associações, entre outros, e várias centenas de pessoas.
Ainda assim, o que foi avaliado é uma pequeníssima fatia das mais de 15.000 espécies de invertebrados conhecidas em Portugal continental, sublinhou Mário Boieiro, coordenador do projecto, durante a apresentação na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. “Portugal tem uma biodiversidade notável e uma riqueza considerável de espécies de invertebrados. Somos também muito ricos em espécies exclusivas, tanto a nível nacional como da Península Ibérica”, lembrou este investigador.
Entre os 201 invertebrados que se sabe agora que estão ameaçados, para 29 espécies a situação é especialmente grave: estão classificadas como Criticamente em Perigo, o último degrau antes da extinção. O projecto classificou outras 109 espécies como Em Perigo, o segundo grau mais elevado de risco de extinção, enquanto que outras 63 não estão muito melhor, pois encontram-se em situação Vulnerável.
Em Portugal, esta foi a primeira vez que existiu um projecto de avaliação de risco para os invertebrados, salientou também Mário Boieiro. Além da recolha da muita informação que estava dispersa em estudos científicos e nas colecções de História Natural de vários museus – sendo que para alguns grupos de espécies havia já muitos dados e para outros quase nenhuns – os cientistas andaram também em trabalho de campo de Trás-os-Montes ao Algarve, a recolher insectos e aranhas em armadilhas, caracóis terrestres e lesmas, bivalves e crustáceos em rios e lagos de água doce.
Para já, contas feitas aos resultados obtidos, os 201 invertebrados em risco representam quase um quarto – 23% – das 865 espécies avaliadas. Em geral, este é um grupo bastante vulnerável, principalmente por duas razões, explicou Mário Boieiro. Primeiro, porque muitos destes animais têm áreas de distribuição “muito reduzidas”, como é o caso da aranha-cavernícola-do-frade – que em todo o mundo existe apenas no sistema cavernícola do Frade, na Arrábida. Em segundo lugar, muitas espécies “têm associações muito especializadas”, dependendo de uma única planta ou hospedeiro para sobreviverem.
O que é importante fazer?
Para além da avaliação do risco de extinção de centenas de espécies e de contribuir para as medidas a serem tomadas pelos decisores, como o Governo e as câmaras municipais, os trabalhos deste primeiro Livro Vermelho dos Invertebrados vão ajudar a que estes “mal amados” sejam mais queridos e conhecidos da população em geral, acredita a equipa. Para isso, terão contribuído vários trabalhos de campo que foram abertos às populações locais e também um projecto de ciência cidadã, lançado durante a pandemia.
Além do seu papel como polinizadores, imprescindíveis para muitos dos frutos e legumes da nossa alimentação, muitas espécies contribuem para a dispersão de sementes e para a reciclagem de nutrientes , como acontece com os escaravelhos da madeira morta. Além disso, os invertebrados estão na base da cadeia alimentar de muitas outras espécies, incluindo répteis, anfíbios, aves, peixes e também mamíferos, num imenso “castelo de cartas” do qual depende a biodiversidade do planeta.
Muitas das situações agora detectadas necessitam por isso de respostas concretas no terreno, salientam os responsáveis do projecto. Desde logo, por exemplo, a definição de planos de acção para a protecção de algumas espécies, que possam funcionar como “chapéu” para muitas outras, mas especialmente planos de acção dirigidos a habitats que são cruciais para vários animais deste grupo. Vários invertebrados, por exemplo, só existem em zonas de montanha, ou ainda em bosques de carvalhos, ou em charcos temporários – como acontece com o camarão-girino (Lepidurus apus), que em Portugal foi encontrado num único charco em Ponte de Lima.
Essa necessidade de proteger habitats, que pode passar pela criação de micro-reservas, está ligada a outra acção importante: a adopção de medidas mitigadoras das alterações climáticas, que ajudem as áreas naturais e os habitats dos invertebrados a lidarem com a seca e o aumento de temperaturas. Esta é uma necessidade que se faz sentir, especialmente, em habitats de maior altitude como prados, pastagens húmidas, lameiros, bosques de carvalhos e cervunais (prados de gramíneas onde predomina o cervum (Nardus stricta)), que “vão desaparecer se não fizermos nada”, destacou Patrícia Garcia-Pereira, coordenadora dos grupos taxonómicos dos insectos e das aranhas no âmbito do projecto.
No que respeita a estas espécies, aliás, 60% das que foram classificadas em risco de extinção ocorrem apenas na região da serra da Estrela, em Montesinho ou no Gerês. “No que respeita a medidas de mitigação das alterações climáticas, podemos começar com os habitats de altitude da Serra da Estrela”, apelou esta investigadora, sublinhando que será necessário combinar actividades económicas como o turismo e a agricultura com as medidas importantes para a biodiversidade. Isso aplica-se também no sul do país, que “enfrenta o problema da intensificação agrícola, que está a destruir habitats.”
Quase um terço com dados insuficientes
De acordo com a equipa do projecto, fazem ainda muita falta mais estudos e campanhas de monitorização, mesmo no que respeita às espécies já avaliadas. Afinal, 28% dos 865 invertebrados agora avaliados continuam a ter informação insuficiente para que seja definido o seu estatuto.
Por outro lado, são apenas 14 as espécies de invertebrados terrestres legalmente protegidas em Portugal, ao abrigo da Diretiva Habitats – produzida pela Comissão Europeia – sendo de esperar que os resultados do trabalho se traduzam na adição de mais invertebrados a essa lista e também na eliminação de espécies que não foram, afinal, encontradas em território nacional.
Para já, o que se sabe é que o elenco destas 14 espécies protegidas “não é representativo da considerável diversidade dos invertebrados de Portugal, nem tão pouco inclui as espécies mais ameaçadas no nosso país”, sublinhou a equipa do Livro Vermelho.
As espécies listadas nesta obra vão passar também a fazer parte do Cadastro Nacional de Valores Naturais Classificados – projecto que se espera que em breve comece a funcionar – passando a beneficiar de protecção legal em Portugal, adianta a equipa. “O livro funcionará também como documento orientador na definição de prioridades de conservação e no apoio à tomada de decisão em matérias relacionadas com a conservação da natureza em Portugal.”
Os resultados apresentados esta terça-feira deverão traduzir-se num livro que vai ficar público em breve, durante o mês de Agosto – tanto em formato PDF, que as pessoas poderão descarregar gratuitamente através do site do projecto, mas também sob a forma de fichas individuais que poderão ser consultadas individualmente, uma por cada espécie.
Este projecto que agora chega ao fim é o resultado do projecto “Elaboração da Lista Vermelha de Grupos de Invertebrados Terrestres e de Água Doce de Portugal Continental”, coordenado pelo cE3c – Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c)/ Instituto para as Alterações Globais e Sustentabilidade (CHANGE), em parceria com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), e cofinanciado pelo Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR) e Fundo Ambiental (FA).
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