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grou espreita num prado
Grou (Grus grus) foto: tauri pärna wiki commons

Censo: Carlos começou a contar grous há 40 anos, a pé e à boleia

23.12.2024

Inverno no Alentejo é sinónimo de contagens de grous. O censo está no campo nos fins-de-semana de 20 e 21 de Dezembro de 2024 e 24 e 25 de Janeiro de 2025. Carlos Miguel Cruz, que começou a contar grous aos 16 anos, falou à Wilder sobre o censo mais antigo feito a uma ave em Portugal.

O mais difícil é o frio. Fica-se com as mãos e os pés congelados. Carlos Miguel Cruz, à beira dos 57 anos e técnico do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) sabe bem. Aos 16 anos, em 1984, começou a sair para os campos do Alentejo com os seus amigos apaixonados por aves para contar grous (Grus grus), uma missão que cumpre todos os Invernos desde então.

Foto: Kraniche Tanz/Wiki Commons

“São três horinhas de sacrifício mas é uma missão muito compensadora, especialmente quando conseguimos perceber que milhares de grous chegam a Portugal” para passar os meses mais frios do ano, vindos do Norte da Europa.

Este censo consiste em ir até pontos de observação nos núcleos de invernia conhecidos, todos no Alentejo – Campo Maior, Arronches, Juromenha/Olivença, Mourão, Moura, Évora, Alvito e Campo Branco – e contar grous durante três horas. Esta contagem acontece num fim-de-semana de Dezembro e num fim-de-semana de Janeiro.

“Primeiro damos uma voltinha pelos sítios onde sabemos que há grous. Depois vamos para um ponto de observação mais alto, que tenha boa visibilidade, e esperamos pelos grous, para que saiam das zonas de alimentação em direcção às zonas de dormida”, contou Carlos Miguel Cruz.

Qualquer pessoa pode participar no censo e ainda vai a tempo de se juntar às contagens de Janeiro, basta contactar a organização ([email protected]). Segundo o ornitólogo, têm conseguido fazer contagens em todos os núcleos de invernia. “Apenas tivemos mais dificuldade na zona da albufeira do Roxo mas a Liga para a Protecção da Natureza (LPN) conseguiu lá ir.” Até porque este é um esforço que junta dezenas de pessoas, desde os vigilantes do ICNF aos técnicos da Herdade da Contenda (em Moura), à LPN ou à associação GEDA, no Alto Alentejo, por exemplo.

No último censo, de 2023/2024, foram registados um total de 13.773 grous em Dezembro e 8.662 em Janeiro. A espécie está classificada como Vulnerável na Lista Vermelha das Aves de Portugal (2022).

Segundo Carlos Miguel Cruz, a população de grous na Europa está a aumentar. Mas o número de grous que chegam ao Alentejo no Inverno tem vindo a diminuir, o que não significa que haja um problema. “Quando há frio e neve no Norte e Centro da Europa, os grous tendem a descer para Sul, para a Península Ibérica, por exemplo”, à procura de melhores condições de alimentação, contou o especialista. No censo de 2021 e de 2022 registou-se um recorde no número de grous no Alentejo, 16.892 aves. “Até houve o registo de três grous que foram parar à ilha Terceira, nos Açores, talvez ‘à boleia’ de algum navio.”

A partir de 2022 registaram sempre números mais baixos. “Mas isso não significa que os grous estejam a diminuir, simplesmente não tiveram necessidade de vir para Sul porque o Inverno não tem sido tão rigoroso nos países onde se reproduzem, no Norte e Centro da Europa”, explicou.

Uma aventura que começou há 40 anos

O censo ao grou será a contagem nacional a uma espécie de ave mais antiga de Portugal, sendo realizado todos os anos desde 1984. Carlos Miguel Cruz recorda as contagens de andorinhão-pálido, que se fazem há 30 anos mas apenas numa colónia.

A primeira contagem aconteceu no Inverno de há 40 anos quando Carlos Miguel Cruz e os seus seis amigos, então adolescentes – (João Luís Almeida Joni, Francisco O. Fragoso, António Rui Laranjeira, João Carlos Meireles, Henrique Velez e Vasco Rasga) -, foram à procura de grous para perceber onde passavam o Inverno e quantos seriam.

Grou (Grus grus). Foto: PeterRohrbeck / Wiki Commons

Tudo começou depois de um contacto da associação espanhola Adenex. “Contactaram-nos a perguntar se sabíamos de locais de dormida de grous mesmo junto à fronteira com Espanha, em concreto em duas charcas do lado português”, recorda Carlos Miguel Cruz. Nessa altura as fronteiras entre os dois países estavam fechadas e a circulação era mais difícil.

“Detectámos alguns locais fazendo prospecções no campo, falando com pessoas no campo e visitando os habitats que sabíamos serem favoráveis.”

Depois, a Adenex veio ao Alentejo e foram juntos visitar locais de grous, na zona de Mourão. “Entusiasmámo-nos e acabámos por ir à procura em todo o Alentejo, a Castelo Branco e ao Algarve”, disse, acrescentando que “em sítios onde havia grous, as pessoas falavam deles com entusiasmo”. “São aves associadas à longevidade e têm características curiosas, como os bandos que, em voo, formam letras e formas.”

Começaram a fazer contagens em três ou quatro núcleos de invernia. “Tínhamos equipas pequenas, de voluntários, para ir ao campo. Éramos adolescentes e nem tínhamos carta de condução ou carro.”

Nessa altura, um apoio crucial chegou do então presidente da Câmara Municipal de Évora, Abílio Fernandes. “Pedimos uma reunião onde lhe contámos da necessidade de contar grous. O presidente da Câmara achou piada e comprometeu-se a disponibilizar uma carrinha todo-o-terreno da câmara com motorista. O combinado era que nos deixasse num ponto de observação numa sexta-feira de tarde e que depois nos fosse buscar no domingo ao início da noite. Este apoio foi fundamental”, recorda.

Outra ajuda veio de Elias Candeias, que nessa altura era funcionário da Direcção Regional de Ambiente, e que se juntou às contagens com a sua viatura de serviço.

Tirando isso, era percorrer os campos a pé ou à boleia.

O que mudou em 40 anos

Hoje, as contagens já não se fazem nem a pé nem à boleia. Há veículos e cartas de condução. E mais pessoas.

Outra das diferenças é a paisagem alentejana.

Central solar no Alentejo. Foto: Hugo Cadavez / Wiki Commons

Nos anos 1980/1990, os grous alimentavam-se em zonas de montado de azinho disperso e no sub-coberto produzia-se cereal, onde o gado não entrava. Os grous tinham assim à sua disposição as nutritivas bolotas que ficavam no chão. “Eles não comem a casca da bolota; não é fácil mas eles descascam as bolotas com o seu bico forte e comem só o miolo”, explicou Carlos Miguel Cruz. Alimentavam-se também de invertebrados, raízes e bolbos. Mas a bolota era a sua principal fonte nutritiva.

No entanto, a agricultura transformou-se, do sequeiro para o regadio. Além disso foram desaparecendo algumas áreas de alimentação dos grous, trocadas por amendoais ou culturas permanentes intensivas onde estas aves não encontram o que comer.

Ainda assim, poucas espécies em Portugal têm tido tanto sucesso como o grou. “Em geral, as pessoas respeitam os grous, acham-nos simpáticos e gostam de os observar”, contou.

Além de serem aves que se adaptam bem às mudanças, os grous acabaram por beneficiar com a criação das Zonas de Protecção Especial (ZPE) para Aves, no âmbito da Directiva europeia Aves. “Algumas foram definidas a pensar na distribuição dos grous no Inverno e aí as autoridades têm mais força para chamar a atenção para o que não se deve fazer e a alteração do uso do solo está condicionada”.

Na opinião de Carlos Miguel Cruz, “o grou acabou por se adaptar bem às questões da alimentação”.

Mas o mais importante tem sido a conservação que é feita, não na Península Ibérica, mas nos países onde o grou se reproduz, como a Escandinávia, Alemanha, Polónia, Rússia ou Repúblicas do Báltico. “Esse esforço de conservação tem resultado no aumento do número de efectivos populacionais desta espécie a nível europeu. Isso é o mais importante.”

Ainda assim, há algumas ameaças ao grou em Portugal, como a ocupação das áreas tradicionais de alimentação por outras culturas permanentes e por painéis fotovoltaicos e pelo aumento das linhas de transporte de energia ou pelos efeitos na saúde dos grous dos fitofármacos e produtos químicos usados hoje na produção agrícola.


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Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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