É especialmente durante a noite que dezenas de investigadores e naturalistas se juntam a cidadãos para procurar borboletas nocturnas em mais de 70 locais espalhados pelo país. Desta vez fomos com eles para o campo, numa noite de novembro, na Serra do Socorro (Torres Vedras), para saber como tudo acontece.
São quase oito horas da noite e o frio de novembro já se faz sentir na Serra do Socorro. Um grupo de pessoas contempla atentamente uma lâmpada colocada sobre um lençol branco. Estão numa pequena clareira que se abre para um íngreme terreno de vegetação baixa, permitindo ver a ermida no topo da serra. No lado oposto, uma floresta de eucaliptos e a estreita estrada por onde subiram.
“Está ali uma!”, alguém exclama. A borboleta noturna esvoaça pelo meio do grupo em direção à lâmpada, acabando por pousar numa caixa de ovos vazia. Hélder Cardoso, cuidadosamente para não a afugentar, aproxima-se e captura-a num recipiente de vidro. Na mesa de observação, é libertada do frasco. Mantém-se imóvel sob olhares perspicazes que tentam identificar a sua espécie.
Trata-se de uma Cerastis faceta, a borboleta noturna mais comum da Estação da Paisagem Protegida Local das Serras do Socorro e Archeira (PPLSSA), uma das mais de 70 estações da Rede de Estações de Borboletas Noturnas (REBN) distribuídas pelo país. Nesta sessão aberta ao público, Hélder Cardoso, naturalista, presidente da direção da REBN e responsável por esta estação, dá a conhecer o projeto.
A REBN é uma iniciativa de ciência cidadã, criada em janeiro de 2021, com o objetivo de gerar informação sobre a distribuição, fenologia, abundância e tendências das mais de 2600 espécies de borboletas noturnas existentes em Portugal. Esta colaboração permitirá fazer uma monitorização a longo prazo e sensibilizar o público para a conservação das espécies e dos habitats. A REBN é um dos três projetos de monitorização de borboletas noturnas de âmbito nacional existentes na Europa, sendo os outros dois no Reino Unido e nos Países Baixos.
Qualquer pessoa ou grupo pode criar a sua própria estação. É apenas necessário contactar a REBN e cumprir o protocolo. O ideal é que a amostragem seja realizada 12 vezes por ano, entre os dias 5 e 15 de cada mês. Caso tal não seja possível, o mínimo de sessões obrigatórias são 9 e, preferencialmente, devem ocorrer entre março e novembro, o período onde há um maior número de espécies ativas.
Uma estação pode ser criada em ambiente urbano, como um jardim ou uma varanda, ou num local mais remoto e natural. Por mais intimidante que o mundo destes insetos possa parecer, a REBN fornece uma panóplia de recursos, desde o “Borboletim”, um boletim informativo mensal, a vídeos no Youtube. Em caso de dúvida, é sempre possível expor as questões por e-mail.
A amostragem pode ser feita com qualquer tipo de armadilha luminosa não nociva, desde que seja devidamente indicada. Existem, no entanto, dois métodos prediletos pela sua acessibilidade. O primeiro consiste na utilização de um balde ou caixa de retenção temporária. As borboletas noturnas são atraídas por uma lâmpada que emite luz no especto ultravioleta e reencaminhadas para o recipiente através de um funil. No interior são colocadas caixas de ovos vazias, para que as borboletas se consigam esconder e pousar. A lâmpada pode ser ligada a uma tomada elétrica ou a uma bateria portátil. Esta amostragem é de longa duração, uma vez que a armadilha é montada ao pôr-do-sol e retirada apenas na manhã do dia seguinte.
O segundo método é semelhante, mas a captura é feita manualmente. Em cima de um pano branco, ou lençol, para facilitar a visibilidade, são colocadas a lâmpada e as caixas de ovos. Habitualmente, estas sessões têm a duração de 3 a 4 horas, sendo 3 horas o período mínimo de amostragem. Esta é a metodologia utilizada nas sessões abertas ao público, porque permite a observação dos indivíduos.
A importância do registo de cada borboleta
Antes de revelar a espécie da borboleta noturna que capturou, Hélder deixa que os participantes a tentem identificar. O inseto está imóvel em cima da mesa de observação, sob a luz de um candeeiro articulado. Ao seu lado encontram-se uma Aporophyla nigra e uma Gymnoscelis rufifasciata, ainda dentro dos recipientes de vidro. Na outra extremidade da mesa, o atlas fotográfico “Macroborboletas Noturnas de Portugal Continental” é folheado pelo grupo. Este livro, criado pela associação, contém informações relativas à distribuição, ao período de voo, ao nível de abundância e à facilidade de identificação de 954 espécies que podem ser encontradas no país. Um dos participantes, que já está mais familiarizado com estes insetos, abre o capítulo referente à família Noctuidae, onde encontra a Cerastis faceta.
Hélder vai buscar o seu telemóvel, abre a aplicação da European Butterfly Monitoring Scheme (eBMS), uma base de dados da qual a REBN é parceira, e demonstra como se faz o registo da amostragem. O primeiro passo é selecionar qual a estação de borboletas noturnas. De seguida, insere-se o horário em que a armadilha luminosa esteve em funcionamento. E, por fim, é feito o registo de todas as espécies de macroborboletas encontradas e o número de indivíduos. Caso não se consiga identificar uma borboleta, é possível selecionar “unknown” e anexar uma fotografia. Como alternativa, pode ser utilizado o algoritmo de reconhecimento de imagens da aplicação, mas este ainda está a ser melhorado.
Existe uma equipa de três pessoas que verifica todos os registos, não deixando margem para erros. Habitualmente, todas as borboletas são libertadas depois da monitorização. No entanto, quando o procedimento é feito por um especialista, este pode considerar necessário guardar o espécime para o estudar.
O principal fator que distingue as microborboletas das macroborboletas é o seu tamanho reduzido. Isto dificulta a identificação da espécie e pode ser desmotivante para iniciantes. Como os voluntários são cruciais para o projeto, a REBN decidiu focar-se em macroborboletas. A associação definiu quatro categorias de identificação de espécies, em que a categoria um se refere a espécies comuns e a categoria quatro sinaliza que a identificação só pode ser feita com segurança por um especialista, através da análise da estrutura genital por dissecação.
Uma outra borboleta, uma Compsoptera opacaria, é atraída pela luz e capturada num dos recipientes.
Através de uma lupa, o grupo examina as delicadas escamas que revestem as asas e o tórax destes insetos. É nestas escamas que ficam agarrados os grãos de pólen, quando as borboletas se alimentam do néctar das flores. Em 2023, um estudo conduzido por investigadores da Universidade de Sussex, demonstrou que estes animais são polinizadores mais eficientes que os insetos diurnos. Embora a maioria das visitas dos insetos às silvas de amora-silvestre tenha ocorrido durante o dia (83%), as visitas efetuadas pelas borboletas noturnas (15%) conseguiram polinizar as flores mais rapidamente.
Além de desempenharem um papel fundamental na polinização, crucial para a reprodução das plantas angiospérmicas e para a produção de frutas e legumes, estes insetos influenciam diretamente a cadeia alimentar de outras espécies. Em todas as fases da sua vida — ovo, lagarta, crisálida e borboleta — servem como alimento para diversos predadores.
“O outro lado da moeda é que muitas borboletas, para além de serem polinizadores, também atacam culturas”, explica Hélder. “Em áreas agrícolas extensivas, onde há alimento abundante e o habitat foi limpo de sítios onde os predadores se possam esconder, as lagartas podem tornar-se pragas”. O trabalho da REBN é importante não só para determinar as espécies que necessitam de ser conservadas, mas também para detetar o crescimento descontrolado de uma população.
Doze borboletas numa noite
A localização da Estação da PPLSSA é interessante para este estudo da evolução populacional. Encontra-se a 303 metros de altitude, numa zona de transição entre vegetação rasteira e um eucaliptal. Em 2020 ocorreu um incêndio e, apesar de não existirem dados anteriores, é pertinente averiguar como a regeneração gradual da vegetação irá influenciar a diversidade de espécies de borboletas noturnas.
Entre 2022 e 2024, a Estação da PPLSSA fez 24 sessões de amostragem, num total de 84 horas, e registou 454 indivíduos de 124 espécies diferentes.
Novas espécies estão constantemente a serem observadas pela primeira vez, já que algumas borboletas realizam migrações de longa distância. É o caso da borboleta-caveira, Acherontia atropos, registada apenas uma vez nesta estação.
Um outro espécime é adicionado à mesa de observação, uma Rhodometra sacraria, que retrai calmamente as suas antenas para trás.
A seu lado está a Aporophyla nigra e o contraste entre as duas não poderia ser mais impactante. Observando a Rhodometra sacraria, uma risca rosada destaca-se nas asas de fundo claro. As suas antenas são pectinadas, em formato de pente, como é característico dos machos desta espécie. As maiores dimensões da Aporophyla nigra evidenciam a coloração distinta dos seus dois pares de asas. Dobradas horizontalmente, as asas brancas são quase totalmente ocultas pelas negras. As suas antenas filiformes são finas e delicadas mas, ao contrário do que acontece com as antenas das borboletas diurnas, não têm uma esfera na ponta.
Nesta amostragem foram registados 12 indivíduos de cinco espécies diferentes, excluindo as microborboletas e a vespa parasitoide que também foi atraída pela luz. No entanto, segundo Hélder, há sessões onde aparecem muitas mais. Um dos fatores influenciadores é o vento, normalmente atenuado pelos eucaliptos, mas que hoje leva as borboletas a abrigarem-se para poupar energia. Outro fator é a lua cheia, previamente encoberta pelas nuvens, mas que agora reflete os raios ultravioleta do sol e compete com a armadilha luminosa.
O motivo pelo qual as borboletas noturnas são atraídas pela luz ultravioleta ainda é um mistério, apesar de existirem vários estudos e teorias científicas sobre o assunto. No entanto, nem todas as borboletas noturnas são atraídas pela luz ultravioleta e nem todas voam exclusivamente à noite. Algumas espécies fazem migrações de longa distância, enquanto outras são altamente localizadas. Segundo Hélder, “Há sempre exceções. Em tudo o que pensarem sobre borboletas, há sempre exceções.”
PUB