Os últimos dias de verão brindam-nos com sinais de mudança de estação. A chuva está de volta, os dias começam progressivamente a ficar mais curtos e até as temperaturas já se sentem mais amenas.
É nesta fase que a natureza se começa a transformar e a preparar para o outono, sendo comum nas clareiras de matos, no subcoberto de pinhais, montados, em terrenos pedregosos e até na fenda de rochas ou em prados abertos e na berma de caminhos, o aparecimento, quase por mistério, de muitas inflorescências com flores brancas. É a cebola-albarrã (Drimia maritima) que nos presenteia com as suas belas flores, com um comportamento diferente da maioria das outras espécies vegetais.
A cebola-albarrã é uma espécie geófita porque, durante a época desfavorável para o seu desenvolvimento no final da primavera, esta planta perde por completo as suas folhas, dando a ideia de que desapareceu. Na verdade, o bolbo subterrâneo mantém-se ativo e no final do verão a planta lança uma haste floral composta de belas flores que se mantém ao longo do outono. As folhas surgem após a floração e mantêm-se durante o inverno e parte da primavera, para voltarem a murchar e a desaparecer no verão.
A cebola-albarrã
A cebola-albarrã, também chamada de cebola-do-mar ou cila, é uma espécie da família Asparagaceae, conhecida pelas inúmeras plantas ornamentais que a compõe, como o dragoeiro, a gilbardeira, o jacinto, o selo-de-salomão, para além de muitas outras com elevado valor económico, como o espargo e a agave, por exemplo.
É uma planta herbácea, vivaz e bolbosa, que se desenvolve perto da superfície. O bolbo é mais ou menos globoso e surge geralmente agrupado com outros bolbos. Cada bolbo tem cerca de 20 cm de diâmetro e pode pesar até 1 kg e apresenta várias camadas externas membranosas, castanhas a avermelhadas – as túnicas – que o protegem.
Cada bolbo suporta cerca de 10 folhas, todas formadas numa roseta basal.
As folhas surgem no final do outono e durante o inverno, após a floração, mantendo-se à superfície até à primavera seguinte, voltando a secar no verão. São inteiras, erectas, lanceoladas e pontiagudas. Medem até um metro de altura e 12 cm de largura, são de cor verde-escuro brilhante, lustrosas e ligeiramente suculentas.
A floração ocorre entre agosto e outubro. De cada bolbo surge uma única haste floral, com 45 a 120 cm de altura, que sustenta na sua extremidade uma inflorescência em forma de espiga com mais de 40 flores pequenas que se vão abrindo em sucessão a partir da base. As flores são compostas por 6 tépalas esbranquiçadas, com uma faixa esverdeada ao centro de cada tépala.
O fruto é uma cápsula elíptica trigonal, em geral com 5 a 10 sementes por lóculo.
Nativa em Portugal
A cebola-albarrã é uma espécie nativa de muitas regiões do Mediterrâneo (Portugal, Espanha, França, Itália e Marrocos) e Macaronésia.
Embora o seu nome científico – Drimia maritima – nos leve a pensar que se trata de uma planta que ocorre apenas no Litoral, a cebola-albarrã encontra-se por quase todo o território nacional, sendo mais comum nas regiões do Centro e Sul. Não há registo da sua presença nas Regiões Autónomas.
A etimologia da espécie é bastante interessante. O nome genérico Drimia deriva do grego drimys, que significa “acre, picante”, talvez devido ao sabor amargo do seu bolbo e das folhas.
O restritivo específico maritima deriva do latim maritimus-a, que significa “perto do mar”, pois trata-se de uma espécie originalmente nativa das regiões costeiras. No entanto, atualmente a sua ocorrência natural vai além dessas regiões, podendo ser facilmente encontrada nas regiões do Interior, em zonas de matos, pinhais, montados, prados, entre outros.
Já o seu nome comum, “albarrã”, deriva da denominação árabe albarran que significa “selvagem”, possivelmente por se tratar de uma planta que cresce geralmente sozinha.
Habita preferencialmente locais com plena exposição solar, embora também prospere em locais de semi-sombra. É pouco exigente do ponto de vista edáfico, podendo ocorrer tanto em solos arenosos, como argilosos ou calcários. É uma planta muito resistente e, como planta mediterrânica que é não necessita de muita água, sendo bastante tolerante a longos períodos de seca. Possui uma elevada capacidade de sobreviver intacta à passagem de um incêndio florestal.
Medicinal, tóxica e ornamental
A cebola-albarrã tem uma longa história de uso medicinal. Possui propriedades cardiotónica, expectorante, diurética, desinfectante, emética e anti-hemorroida, sendo comum a sua utilização no tratamento de problemas diuréticos, digestivos e circulatórios. Também existem registos etnográficos da sua aplicação no tratamento de bronquite, asma, tosse, insuficiência cardíaca, picadas de insectos, queimaduras provocadas pelo frio e verrugas.
O teor de enxofre da cebola-albarrã também lhe confere propriedades fungicidas.
Externamente, é usada no tratamento da caspa e dermatite seborreica do couro cabeludo.
No entanto, como qualquer outra planta medicinal, é necessário muito cuidado no seu uso, pois todas as partes da planta contêm flavonóides, terpenos e glicosídeos cardíacos, que são altamente tóxicos para os humanos, roedores e a maioria dos animais domésticos, em particular os que se alimentam nas pastagens.
As folhas e os bolbos da cebola-albarrã são evitados pela maioria dos animais domésticos – cabras, ovelhas, porcos e vacas e por alguns animais selvagens (coelhos e javalis) – por causa de seu sabor muito amargo e das mucilagens dos bolbos, que lhes podem provocar vómito ou causar inflamações na pele.
Na medicina popular, os bolbos da cebola-albarrã também têm sido usados como repelentes de insectos e no controlo de parasitas no geral, nomeadamente as pulgas.
Alguns agricultores ainda hoje a cultivam, como meio de combate a roedores que são atraídos pelos seus bolbos que não se inibem de comer. Os bolbos também são reduzidos a pó e funcionam como insecticida e raticida natural.
O suco extraído dos bolbos e das folhas são ainda aplicados como revestimento nos troncos das árvores de fruto, para as proteger das formigas.
A cebola-albarrã é uma planta muito fácil de cultivar e pode ser uma solução interessante do ponto de vista ornamental, sobretudo em jardins rústicos, com pedras, para formar maciços muito vistosos, com muitas folhas durante o inverno e parte da primavera e muitas flores no final do verão e no outono. As suas flores são muito procuradas na floricultura para corte.
Planta misteriosa
Como acontece com muitas bolbosas, esta espécie foi em tempos vista como uma planta misteriosa.
Os antigos achavam-na impressionante pela sua capacidade de florescer sem água e prosperar nos locais mais secos e difíceis para as restantes plantas.
O filósofo Pitágoras e o médico Dioscórides usaram-na como proteção contra espíritos malignos e visitantes indesejáveis. Todos os anos, na primavera, penduravam os bolbos com as suas folhas do lado de fora da porta.
Depois de desvendada esta espécie, resta explorar a natureza. E não se esqueçam, nada de procurar as folhas, porque nesta época do ano só vamos encontrar hastes florais.
Dicionário informal do mundo vegetal:
Vivaz – planta que vive mais do que dois anos, renovando anualmente a parte aérea.
Bolbosa – planta que produz um bolbo.
Túnica – membrana que reveste o bolbo.
Lanceolada – folha com forma semelhante a uma lança.
Inflorescência – forma como as flores estão agrupadas numa planta.
Tépala – peça floral não diferenciada em pétala ou sépala.
Trigonal – fruto triangular em secção transversal.
Lóculo – cavidade ou compartimento do fruto, onde se alojam as sementes.
Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.
Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas.
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