O Parque Nacional da Peneda-Gerês foi criado há 50 anos e as celebrações decorrem até 8 de Maio de 2021. Até lá, Miguel Dantas da Gama, profundo conhecedor desta área protegida, vai aproximar-nos deste recanto único no nosso país.
O estado das populações dos superpredadores, pelo facto de ocuparem o topo da pirâmide ecológica, é revelador da situação em que se encontram os ecossistemas de que fazem parte. Águias-reais, lobos e ursos-pardos ajudam a explicar como o Parque Nacional evoluiu no passado, o que é no presente e como poderá ser no futuro.
A forma como a natureza do Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG) se degradou nas últimas décadas é-nos contada pelas gerações de águias-reais que sempre viveram nesta área protegida e que se foram perdendo até desaparecerem em meados de 2009. Sobre a grandiosidade e a imponência da maior das nossas águias contra a qual o homem investe, alterando o habitat, provocando incêndios, eliminando as suas presas pela prática da caça, violando os seus locais de nidificação e até matando-as com veneno, já na WILDER me detive em maio de 2019. Se as águias não desapareceram totalmente do PNPG tal deve-se ao projecto de libertação de indivíduos, iniciado na vizinha Galiza no ano 2000 e ainda em curso, com o qual se tenta que a espécie reocupe os seus históricos locais de nidificação. A muito custo.
O lobo é actualmente o superpredador sobrevivente, aquele que soube resistir às inúmeras malfeitorias com que o homem o persegue desde tempos imemoriais. Ao que contei em janeiro de 2017 aqui na WILDER sobre esta superdotada espécie, importa agora acrescentar, no contexto desta crónica, que a sua presença na Peneda-Gerês assenta numa realidade contraditória, profundamente errada e que não devia ocorrer num espaço classificado de parque nacional. A sua sobrevivência depende muito do gado bovino e equino que pasta sem qualquer controlo no território. É uma realidade que nega o equilíbrio natural dos ecossistemas algo que deveria ser referencial numa área protegida e que, mais uma vez devido à acção humana, é fortemente contrariado. A escassez de presas silvestres pelas mesmas razões que vitimaram as águias e a facilidade com que o lobo se habituou a incluir animais domesticados pelo homem na sua dieta, são factos que afrontam os princípios em que se inspirou a criação da Peneda-Gerês e que na evocação dos seus cinquenta anos importa relembrar.
A comprovada incursão recente de um urso-pardo em território nacional já depois do que escrevi para a WILDER em maio de 2018 interpela-me a incluir esta icónica espécie na efeméride do Parque Nacional insistindo para o que nos devia motivar quando se pensa no seu futuro e na preservação da natureza na faixa do território português que a norte se une a Espanha. Volto ao tema não para alterar nada do que escrevi anteriormente, mas para acrescentar e reforçar o que defendi e até para contrariar parte do que li e ouvi a propósito da tão espetacular e simbólica visita que em maio de 2019 deu que falar.
Sinto-me um privilegiado por conhecer alguns dos maiores especialistas que na cordilheira cantábrica trabalham em defesa do urso-pardo. Constatando no terreno o que favorece a prosperidade da população ursina de onde emanam os exemplares que agora caminham na nossa direção e acompanhando também as muitas adversidades com que se confrontam aqueles que empenhadamente tentam restabelecer outra população viável na cordilheira pirenaica, é fácil concluir o muito que a Peneda-Gerês perdeu e no qual se incluem os ursos-pardos.
A espécie continua extinta em Portugal. Mas é possível sonhar com o dia em que este estatuto possa mudar, mesmo que ligeiramente. É provável que o individuo aventureiro do ano passado não seja um caso isolado. À medida que caminhamos para norte por um dos possíveis corredores que os ursos estão a utilizar no seu trajecto para sul e sudoeste, mais exemplares deambulam neles. É importante investir nos Montes da Sanabria, na serra da Culebra. Pelos Ancares poderão atravessar a Galiza e as serras são importantes, não apenas porque mais despovoadas, mas também como espaços mais propícios à reprodução. E sem reprodução não há população. A aproximação dos plantígrados ao nosso território implica pois um trabalho conjunto com os nossos vizinhos espanhóis e não apenas pelo saber acumulado que eles já adquiriram. Para que a faixa no extremo norte do nosso país possa fazer parte de um futuro território de ocorrência mais alargada, são necessários também fortes investimentos em regiões espanholas que há muito já não convivem com ursos como as terras fronteiriças de Zamora.
Na evocação dos cinquenta anos do PNPG é oportuno lembrar o muito que continua por fazer, o quanto é preciso recuperar, restaurar, preservar. Uma motivação tão forte como trabalhar em prol do urso-pardo significaria investir na recuperação do coberto vegetal natural, atendendo ao perfil predominantemente herbívoro das populações ibéricas desta espécie. E se queremos sentir ursos mais perto e mais vezes, temos que investir muito em ordenamento. E em meios humanos. Portugal precisa de gente, mais gente, com «vida de monte», mas não apenas para usufruir, para observar e fotografar animais selvagens, admiradores da natureza certamente, mas que revelam estarem satisfeitos com a realidade actual, o que é lamentável.
Precisa de mais técnicos no terreno e não apenas no laboratório, precisa de acções profundas de restauro de ecossistemas e de dialogar e envolver as pessoas que diariamente convivem e dependem dos territórios onde queremos ter vida selvagem. Pessoas a quem se ajude a alterar comportamentos altamente nefastos para a preservação da natureza, há que dizê-lo com frontalidade, pessoas a quem se prove que a mudança também é, ou poderá vir a ser algo bom para elas. Ao Estado importa lembrar que autoridade com justiça só é possível também com muita presença. Infelizmente caminha-se no sentido errado.
Finalmente, engenho e arte só se alcançam com muita paixão. Tudo isto tem faltado. Também ao Gerês, que apesar de «mítico» continua muito longe de se poder considerar um santuário de vida selvagem.
O Parque Nacional da Peneda-Gerês foi criado a 8 de Maio de 1971. Hoje abrange os concelhos de Arcos de Valdevez, Melgaço, Montalegre, Ponte da Barca e Terras de Bouro. As matas do Ramiscal, de Albergaria, do Cabril, todo o vale superior do rio Homem e a própria serra do Gerês são um tipo de paisagem que dificilmente encontra em Portugal algo de comparável.