Guiados pelas palavras de Miguel Dantas da Gama viajamos até estes lugares únicos na Terra, onde nos aguarda um “mundo vertical que nos surpreende constantemente”.
Nas vésperas de uma viagem que me colocará diante das mais altas do mundo, as montanhas interpelam-me com intensidade redobrada, tomam-me tempo e consomem-me memória, para além do que é habitual. E criam-me alguma ansiedade, porque por estes dias preparo-me de modo a tentar evitar que se me escapem as inúmeras oportunidades proporcionadas por uma incursão que não se repetirá.
As montanhas fascinam-me, sim. Não tanto, ou melhor, não apenas pelo desafio físico que é trepá-las, pela aventura que é enfrentar uma natureza mais extrema quando se sobe mais e mais, ou seja, pelos ingredientes geradores da adrenalina que a maioria busca nestas paragens. Elas condicionam-me a vida, porque a beleza dos seus cenários, a multiplicidade dos tipos de habitat que se vão sucedendo à medida que se ganha altura, a fauna e a flora que só nestas paragens rarefeitas se encontram, afetam-me. Não me move a «conquista» dos cumes. Ajustando uma ideia que Paolo Cognetti expressa no seu livro Sem Nunca Chegar ao Cimo (parafraseando o que Peter Matthiessen escreveu muito antes em The Snow Leopard), mais importante do que alcançar o cume é o caminho que se faz na sua direção.
A montanha torna-se desafiante sempre que o quisermos. Invencível sempre que ela queira. Mas se não respeitarmos os seus complexos sistemas vivos dependentes de equilíbrios progressivamente fragilizados pela ação do homem, a invencibilidade não passa de um mito, também ele incapaz de suster a perda de tão importantes ecossistemas.
O aumento da população humana, que numa progressão geométrica se foi expandindo a partir das zonas costeiras e dos estuários dos grandes rios, empurrou a vida selvagem para cotas cada vez mais altas. O recuo dos glaciares, agravado pelo aquecimento global, torna agora a proximidade dos cumes o último refugio para muitas espécies vegetais e animais, nomeadamente para as que sobreviveram à última glaciação.
Nas ciclópicas paragens das Torres del Paine na «longínqua» Patagónia, na imensa cordilheira andina, em toda a espinha das Rochosas norte-americanas, no Denali do gélido Alasca, nos tetos supremos do Nepal, do Tibete e do Paquistão na mais alta cordilheira himalaia, nos africanos Atlas, Montes Virunga e Kilimanjaro, ou nas mais próximas cordilheira pirenaica, alpina e dos Cárpatos, encurralamos populações de condores, ursos, lobos, leopardos, gorilas ou quebra-ossos. Só para falar dos animais emblemáticos maiores que motivam os mais empenhados movimentos de conservação da natureza. São «apenas» a ponta de um iceberg formado por uma legião imensa de seres vivos, todos eles importantes, independentemente da discrição da sua aparência, da sua vida.
As regiões montanhosas definem-se pelo desnível, pela diferença de altitudes que mais ou menos abruptamente promovem a diversidade dos ecossistemas naturais que aí evoluem. Quanto maior for o desnível mais ampla é a variação dos nichos ecológicos e, consequentemente, mais evidente se torna a variedade das espécies vivas e dos seus habitats.
A montanha é uma sucessão de vales e cristas. Se os primeiros forem mais escarpados e profundos, mais proeminentes se revelam as segundas. Mergulhar nesses canhões, apreciar os topos vencendo portelas (puertos dizem os nossos vizinhos espanhóis) por entre cumeadas, é entrar num mundo vertical que nos surpreende constantemente.
Bosques caducifólios, também galerias ripícolas, são a componente mais expressiva do coberto vegetal que ocupa a base das montanhas. À medida que subimos, as árvores de folha caduca vão cedendo lugar aos bosques de coníferas. Primeiro misturam-se com estas, depois deixam as árvores de folha perene subirem isoladas. Até que também os pinheiros e abetos vão rareando à medida que os prados de altitude se tornam dominadores em encostas que no inverno se cobrem de neve. Mais acima a vegetação rasteira também se revela escassa. Grandes cascalheiras, outrora cobertas de neve e gelo perpétuos, são a base dos cumes por entre os quais, nas montanhas maiores, fluem os últimos glaciares.
Aí, sem os elementos referenciais a que estamos habituados nos nossos mundos rurais e urbanos, distâncias e dimensões enganam. Num ambiente de luz mais transparente, de ar mais rarefeito, quase sempre imersos em grandes silêncios, experimentam-se sensações que lá em baixo, nas nossas zonas de conforto, não são possíveis. Mesmo acompanhados, há uma solidão boa que cada um de nós vai sentindo na sua progressão, no seu ritmo próprio, sob as condições que só no alto das montanhas se experimentam. Nestes últimos andares também há vida. As plantas e os animais que por aqui, com mais dificuldade, se avistam, são as cerejas no topo do bolo.