Dias com vida selvagem: as gralhas da Pedra Que Verte Água

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Na serra às primeiras horas da manhã. Mesmo sem grandes nuvens à vista está frio e assim permanecerá todo o dia. A estas altitudes, o vento algo forte intensifica essa sensação. Mas o tempo vai mudar.  

Para os próximos dias estão previstas temperaturas máximas muito elevadas. Será então muito mais custoso empreender o percurso de hoje, já que umas centenas de metros acima da aldeia abandonada aonde ele se inicia, o caminho deixa de estar protegido pelo pequeno carvalhal que sempre envolveu o antigo casario.

Entre os carvalhos sobrevive outro arvoredo silvestre. Azevinhos, padreiros, um núcleo de aveleiras igualmente espontâneas, uma ou outra pereira-brava. Mas na espessura da mata também se vislumbram sinais do tempo em que aqui vivia uma pequena comunidade serrana. As cerejeiras são, para já, as únicas árvores que exibem frutos. Cerejas-pato é o que ocorre chamar a alguns deles, atendendo aos seus sugestivos contornos. Mas os apêndices que amiúde surgem neste precoce fruto da primavera, por isso muito importante para a fauna selvagem, não lhes subtrai o apelativo aspeto muito menos o sabor que principalmente os mais ruborizados detêm.

Experimentei dois ou três exemplares desta variante «animal» mas muitos mais da versão comum. Para que não ficassem dúvidas fui insistente no estudo, na análise comparativa, apesar de o dia ter começado há pouco e ainda pouco ter sido o esforço físico despendido, para justificar tão farta iguaria. Mas saborear as cerejas no momento em que se colhem é algo irresistível, mais ainda para quem as aprecia particularmente.

Da mesma opinião parecem ser os estorninhos e melros, os chapins e os pardais-montês que logo que abandonei a recoleção, depressa voltaram ao banquete que por momentos lhes interrompi. Nenhum deles perde tempo a admirar as formas de tão providencial alimento.

À medida que se sobe, a calçada antiga apresenta-se mais esboroada pelo tempo. As giestas, há muito sem qualquer desbaste, tomaram conta da passagem, nalguns troços estrangulando-a por completo. A água da ribeira que outrora alimentava a aldeia ainda corre com força e ouve-se cantar quando vence os sucessivos obstáculos que as pedras do seu leito lhe criam. O trilho atravessa-a duas vezes, acompanha-a todo o tempo.

Muito mais acima, numa depressão aplainada da corga, um pequeno núcleo de choupos, também obra do homem, sobressai, apesar de ainda longe, na espessa e homogénea cobertura arbustiva, nesta altura num tom intensamente amarelo. As giestas estão exuberantemente floridas tornando a encosta mais bonita, mas não conseguindo fazer esquecer que são os fogos que fazem expandir e tornar tão dominador o quase impenetrável giestal. 

Do pequeno choupal solta-se um grasnar e logo a seguir a gralha que o emitiu. O binóculo aponta-me três pontos negros por entre a folhagem. São duas gralhas e um ninho, que logo depreendi elas terem abandonado há muito pouco tempo. Normalmente fugidias, estas duas gralhas-pretas muito jovens, mantiveram-se num ramo alto, mesmo quando atingi o bosquete.  

Gosto particularmente de corvídeos, aves a que o homem injustamente colou uma imagem negativa, de mau agoiro. No reino da avifauna são das mais inteligentes. Nos longos dias de solidão na montanha, passam-se horas em que nada acontece. Quando os corvos ou as gralhas surgem, quase sempre em bando, é uma animação. Ruidosas, progridem no céu em voos acrobáticos, muitas vezes hilariantes.

Para quem segue as grandes aves-de-rapina, os corvídeos são preciosos ajudantes de campo. Quando picam insistentemente sobre um cabeço, um penhasco proeminente, é quase certo estar lá pousada uma das grandes aves que procuramos.

Deixo as jovens gralhas-pretas em paz para que os progenitores possam voltar à sua companhia. O trilho é agora um estreito carreiro de pé-posto, ladeado por urzes e carquejas. Ouve-se o piar insistente das felosas-do-mato que deambulam neste mato rasteiro. Aproximo-me então do topo da corga de onde emerge um afloramento rochoso. É do seio deste amontoado granítico que brota o manancial que fez surgir o povoado, uns bons quilómetros mais abaixo. Muito apropriadamente chamaram-lhe a Pedra Que Verte Água. 

Um pouco acima dela atinge-se a cumeada. Deixou de haver qualquer carreiro no extenso prado de altitude que a partir daqui se expande e que só termina quando se alcançam as vigorosas escarpas do vale para o qual me encaminho. Nele outras histórias se contam. Tão extensas quanto as paredes alcantiladas que já se adivinham. Com elas a serra adquire outro encanto.

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