Uma manhã lisboeta, feita de nesgas do Tejo azul, cheiro a sardinhas, sol e ar fresco. E três crias de falcão-peregrino, que exercitam as asas do alto da sua fraga de cimento urbano. Tudo isto nos conta Paulo Catry, biólogo.
Lisboa, 26 maio 2022
Ao raiar do dia os falcões-peregrinos aqui do bairro parecem já bem acordados. Atentos, contemplam sem pressa tudo o que se passa à sua volta. São dois adultos e, este ano, três crias. Bom sucesso reprodutor, aliás como de costume.
Ao longo destas manhãs sente-se o ar vindo do mar e um estremecimento pelo corpo, mangas curtas, braços e asas livres. Sabe bem sair de casa ainda cedo “caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento”. Sol e ar fresco, quase frio, faz-nos vivos. Não é claro se isto é primavera ou se já chegou o verão. Certo é que é fácil imaginar peixes de mar só de se vislumbrarem nesgas de Tejo azul por entre escadarias e paredes brancas. Ao meio-dia cheira a sardinhas.
Nos baldios está tudo bastante seco, restam algumas malvas e verbascos, estão com força os cardos-d’oiro espinhosos, luminosos como o dia. Os caracóis fazem por disfarçar-se, mas sem querer dão nas vistas, como é que ainda resistem? Acabam a encher pratinhos, coitados, juntos com as cervejas nas esplanadas de tardes meio perdidas.
A cria de peregrino mais atrasada é grande, parece uma fêmea. Nas aves de rapina, ao contrário da maior parte das outras aves, as fêmeas são maiores. Quanto mais ágeis e ferozes são na caça, quanto mais outras aves predam, também quanto maior é este dimorfismo sexual em que as fêmeas se sobrepõem aos machos. Assim, a diferença entre os sexos é grande em predadores de aves como os açores, os gaviões e em falcões como os peregrinos. A diferença é mais modesta em predadores de pequenos mamíferos, de lagartixas ou de insetos, como milhafres, águias-d’asa-redonda ou francelhos, e desvanece-se em quase nada em necrófagos como os abutres. As teorias abundam e os estudos comparativos também, mas as explicações continuam incertas: talvez as fêmeas tenham que ser grandes para resistirem à agressividade dos machos e maiores ainda quanto mais estes forem violentos e bem armados de garras e bico (ou seja, quanto mais forem perigosos para outras aves, perigosos até mesmo para as parceiras).
A cria mais atrasada parece uma fêmea, dizia. Faz umas corridinhas de um lado para o outro, exercitando as asas do alto da sua fraga de cimento urbano. De vez em quando grita. Os dois irmãos já voam, mas aventuram-se pouco ainda. Estão confortáveis, de papo visivelmente cheio. Tudo lhes interessa, tudo os excita. Olham para baixo, perscrutam em cima. Nada escapa àqueles olhos negros e fundos. Experimentam cada objeto com as patas e com o bico. Mudam de poiso, voltam à origem. Tudo é novo nesta vida por ora citadina.
Mais uns dias e desaparecem, vão deambular por dois ou três anos até se decidirem a assentar arraiais e constituir família: será no campo ou na cidade? Será onde a liberdade calhar.
Maio de jacarandás que se demoram até junho. Os andorinhões enchem o céu de gritos, zilros. Na rua há pessoas que andam felizes sem se aperceberem disso.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.