O biólogo Paulo Catry adentra-se pelo deserto do Sara. Será que há vida numa paisagem feita de vento e silêncio? Sim, há. Mais do que isso, há a prova de que “não há locais sem pássaros no mundo. E talvez já não venha a haver mais mundo sem pássaros”.
Mauritânia, dezembro 2023
Depois de uns dias de trabalho no litoral, em Nouakchott, em Nouadhibou e no Parque Nacional do Banco de Arguim, viajo para o interior, deserto adentro.
Nos primeiros tempos, uma nuvem de poeira branca levantada pelo vento esconde o branco mais distante da paisagem desolada. Quilómetros disto, dias mesmo. Gosto, porém, desta tristeza baça pela sua extensão. A pouco e pouco o frenesim do século XXI dissolve-se no ar espesso de poeira quente. Com o passar das horas a respiração fica lenta, profunda, cada músculo relaxa e molda-se ao assento da dupla-cabine, ou limita-se ao esforço ligeiro das longas caminhadas, confortável. A meditação torna-se num estado permanente, natural. Não há estímulos complexos nem profundidade no pensamento. Uma duna, uma pedra, distância, vento, outra duna.
As cores do deserto mudam com a luz, tanto como estamos mais habituados a ver no mar. O branco é agora doirado, laranja, depois pastel, sombras. Há diversidade na paisagem. Aqui o deserto é uma folha de papel branco, sem estrutura, uma extensão de nada. Muito mais adiante há dunas rodeadas de regs de vegetação esparsa e depois dunas rodeadas de dunas. Há dunas etéreas onde incompreensivelmente crescem plantas. Um dia mais à frente há rochas, montanhas, vales ladeados de fragas, pedra negra despida em vez de areia branca nua. Ocasionalmente uma linha de vegetação ao longo de um oued.
Impossível fotografar o silêncio. Não há grilos nem cigarras, não há nada a não ser vento. Uma noite vem um bufo do deserto (Bubo ascalaphus) cantar junto à tenda. Outra noite mais além há uivos de lobinhos (Canis lupaster) a ecoarem num vale rochoso. Depois de um dia de vento forte que afogou tudo num nevoeiro mudo, ao crepúsculo canta corajosa uma minúscula toutinegra-do-deserto (Curruca deserti). O recital repete-se nos dias seguintes, breve e melancólico, mas decisivo na confirmação de que não há locais sem pássaros no mundo. E talvez já não venha a haver mais mundo sem pássaros.
Chinguetti foi, durante séculos, a cidade mais importante da Mauritânia.
A dado momento integrou o mesmo império almorávida que regia muito do sul da Península Ibérica, incluindo Lisboa, o Alentejo e o Algarve. Um pouco mais longe está Ouadane, a 500 km do mar. Os portugueses andaram por aqui em finais do século XV, tentando controlar parte do comércio transariano de ouro, de sal e de escravos. Não se demoraram.
Atualmente Chinguetti e Ouadane são pequenas vilas que sobrevivem com dificuldade ao deserto, orladas pelos seus modestos oásis de palmeiras produtoras de tâmaras. Aqui há mais pássaros, sobretudo migradores; até cá chegam as familiares toutinegras-dos-valados (Curruca melanocephala) que por Portugal julgávamos sedentárias.
No interior faz frio em dezembro, mesmo em pleno dia. De noite e de madrugada, barrete, luvas, gola, casaco, felizmente o saco-cama é dos quentes. Ao longo do caminho recolhem-se ramos secos para a fogueira do acampamento. A carga extra não pesa aos dromedários e a conversa ao serão tem outro gosto frente às labaredas.
Pinturas de girafas e de outros animais em rochedos no meio do Sara convocam tempos antigos e outros climas. Às mudanças naturais adicionou-se a atividade humana, com um pastoreio sempre excessivo que contribui para a crescente desertificação (é que há desertos e desertos).
Já ao longo do século XX, a caça com armas modernas a partir de veículos motorizados esvaziou completamente o Sara de uma abundante fauna de grandes mamíferos, como os órixes (Oryx dammah), os adaxes (Addax nasomaculatus) e várias gazelas, de predadores como as chitas (Acinonyx jubatus hecki), de grandes aves como as avestruzes (Struthio camelus camelus*). Há milhares de anos que não há dromedários selvagens, ficaram apenas os domésticos (ainda que vagueiem livres como outrora). Esvaziámos da grande fauna selvagem um deserto de 11 países e de mais de 9 milhões de quilómetros quadrados: somos os humanos, imparáveis.
Restam pequenos mamíferos, répteis e os inevitáveis pássaros.
Mas sobretudo há aqui espaço sem riscos ou estruturas que forcem a paisagem. O deserto é quase todo isento de retas, de círculos, de vedações, de estradas, de postes, de linhas elétricas, de plantações. É livre o movimento, desimpedido em todas as direções. Tem muito de marítima esta navegação.
A escassez de estímulos aguça o sentido lírico. Não espanta que a Mauritânia seja um país de poetas. Cada pedra parece preciosa, cada planta inesperadamente bela. Cada curva de duna é única como uma impressão digital. O passado remoto flutua abundante à tona das areias, séculos e milénios omnipresentes nas ruínas e nos artefactos (cidades, fragmentos cerâmicos, restos de mós, bifaces).
No regresso, a máquina fotográfica trouxe mais areia a emperrar-lhe as engrenagens do que retratos evocativos: nem ar límpido nem talento. Fosse como fosse, o tempo e a paisagem não caberiam nas imagens.
* S.M. Durant et al. 2014. Diversity & Distributions.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.