Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica, visita ao Parque de Natureza de Noudar, em Barrancos, “um dos cantos mais selvagens e remotos do país”.
Noudar, Barrancos, 14 Outubro 2021
Outubro já foi o meu mês favorito. Depois entretive-me com as primaveras, e a modos que me fui esquecendo. Mas quando regressam os dias da luz macia fico boquiaberto outra vez.
Curso de campo anual no Parque de Natureza de Noudar, desta vez com os alunos da licenciatura. Já vai sendo uma tradição, sempre em meados deste mês.
Choveu bem em setembro, excecionalmente, duas enormes chuvadas. As ribeiras encheram e transbordaram, alagaram-se as terras no fundo dos barrancos. Já foi há mais de duas semanas, há verde por todo o lado, e até tapetes brancos de narcisos perfumados (narcisos-da-tarde Narcissus serotinus, não são propriamente uma florzinha que se encontre a cada canto!). Que contraste, geralmente por esta época o campo ainda está amarelo, da erva seca deixada pelo sol de Verão.
Custa admitir, mas a primeira vez que vim a Noudar foi há mais de trinta anos, já não quero contabilizar com rigor, andava no liceu. A Casa da Malta, onde ficamos agora, e todo o monte da Herdade da Coitadinha estavam em ruínas, o caminho até ao Castelo mal sinalizado, chegar aqui era uma pequena aventura. A paisagem conserva ainda os traços essenciais, o sossego predomina. Não há poluição luminosa, este é um dos cantos mais selvagens e remotos do país.
Nem tudo permanece, claro, pois se o mundo é composto de mudança. Nos extensos montados, as azinheiras continuam a morrer em passo acelerado, aqui mais que no resto do país; são muitas ainda, frondosas, densas, notáveis, mas em diminuição. Por outro lado, veados não se viam, agora proliferam, e os javalis são cada vez mais conspícuos e atrevidos. Os céus estão povoados de grifos e de milhanos (milhafres-reais), muito mais do que naqueles dias em que os chascos-pretos ainda nidificavam no castelo. E nos rios, cresceram corvos-marinhos. Até uma águia-imperial vimos, quase adulta, demorou-se ao lado do Ardila.
Que maravilha de outubro! Nas encostas dos barrancos, onde o solo parece difícil, há inúmeras campainhas-de-outono, por entre estevas esparsas: minúsculas, mas nem por isso sabem a pouco. Cebolas-albarrãs floridas em pequenos grupos. E um espantoso concurso de beleza roxa, entre noselhas e açafrões-bravos, venha e escolha quem puder. Um pica-pau-malhado-grande mostra-se bem, trabalhando a madeira de uma azinheira que secou recentemente. A árvore ainda mantém as folhas, quase vermelhas, e, por um momento, embrenhado no quadro do pica-pau que brilha sob o sol oblíquo, iludo-me e julgo que não é morte, mas mais outono ainda.
Espera ao anoitecer, posto de observação privilegiado num pequeno cabeço. Os javalis lavram afincadamente a terra macia na pequena várzea da ribeira de Múrtega. Uma cria de veado, já crescida, corre excitada sem destino, mas sem se afastar da mãe. Quando o céu vermelho esmorece, brilham mais fortes Vénus, e Júpiter e Saturno de luas e anéis bem visíveis à luz do telescópio. Passa uma cegonha-preta atrasada em frente ao último lampejo do dia. E canta um sapo-parteiro. Incrível, tanta água e, sapos-parteiros, só um. Estão atrasados? ou também isto mudou?
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.