Operacional esteve o Michael Armelin toda a sua longa vida. Sempre de binóculos e de alicate de anilhagem preparados. Incansável no entusiasmo. Que dizer? Para se escrever um justo obituário seriam necessários outros conhecimentos e dados biográficos. Não tenho nenhuns. Mas tenho saudades.
Fevereiro 2024
Frio e vento. Até chuviscou, mas mais que tudo brilhou o sol. Os campos floridos e as nuvens dispersas fazem a paisagem maior neste dia diferente. Tempo de narcisos, ainda, mas já despontam os gladíolos-do-monte.
Com a ajuda do telescópio vi de perto britangos, cegonhas-pretas, uma águia-cobreira de papo tão cheio que parecia que ia rebentar (com esta invernia já se veem cobras? que teria ela apanhado?). Kowa, ocular fixa, 30X, foi o Michael que me o trouxe de Londres em 1991. Os anos passam, mas o telescópio ainda está operacional.
Operacional esteve o Michael Armelin toda a sua longa vida. Sempre de binóculos e de alicate de anilhagem preparados. Incansável no entusiasmo. Que dizer? Para se escrever um justo obituário seriam necessários outros conhecimentos e dados biográficos. Não tenho nenhuns. Mas tenho saudades.
Saudades daqueles tempos em que saíamos fim-de-semana sim, fim-de-semana sim. O Michael, o Helder Costa e eu, por vezes juntavam-se outros amigos. Estuário do Tejo, Sado, Cabo Raso, Alentejo…. Finais de 1980, início dos 1990, era raríssimo encontrar birdwatchers ou fotógrafos de aves. Não havia eBird, nem sequer internet ou telemóvel. Cada saída dava a ilusão de se desbravar terreno virgem, ainda que outros pioneiros já o tivessem palmilhado.
Foi o Michael que me ensinou o bê-à-bá da anilhagem, no açude da Murta, nas lezírias do Ribatejo…; e na Lagoa de Santo André, claro está, mas aqui havia outros formadores também, nessa informal e maravilhosa escola portuguesa de captura e marcação de aves selvagens. Ainda o vejo rir-se das cigarrinhas e das toutinegras que se nos escapavam por entre os dedos. Com ele estava sempre tudo bem.
Dando muito do seu tempo livre, o Michael teve um papel importante na SPEA (Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves) onde fez parte de várias Direções Nacionais. Adorava Portugal e procurou (com sucesso) contribuir para o crescimento da ornitologia nacional e para a conservação da avifauna. Também acontecia fazer-se difícil. Intempestivo, nem sempre parecia razoável. Mas já o conhecíamos, era o Michael, e sabíamos que com ele podíamos contar.
O Michael Armelin faleceu no dia 28 de fevereiro de 2024, fiel a este país que há mais de meio século tinha escolhido como morada. Deixa-nos memórias de dias felizes que havemos sempre de revisitar. Como quando, logo de madrugada, chegava equipado de boina e crachá “ducks unlimited”; sotaque carregado, gargalhada tonitruante, pé pesado no acelerador, lá nos levava com ele para sul, olhos postos na passarada.
Obrigado, Michael.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.