Estorninhos-malhados no Campo dos Mártires da Pátria, Lisboa, em 7 de Janeiro 2022. Foto: Paulo Catry

Crónicas naturais: dez mil estorninhos

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Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica, os espantosos bandos de estorninhos, um espectáculo para quem quiser ver ao final das tardes em Lisboa.

Lisboa, 07 Janeiro 2022

Faz hoje anos que comprei o meu primeiro guia de aves. Recebi uma boa prenda de aniversário: 10.000 estorninhos-malhados Sturnus vulgaris num dormitório em Lisboa, no Campo dos Mártires da Pátria. O número é redondo, aproximado, os estorninhos são difíceis de contar, sobretudo quando se está embasbacado e a tentar fotografar. 

Dez mil não é nada, são conhecidos dormitórios com mais de um milhão de estorninhos na Europa além Pirenéus. Mas este “nada” lisboeta enche o olho e as pessoas que passam param e olham para cima, surpreendidas, interessadas (também há uma senhora focada em alimentar 3 ou 4 patos do jardim, totalmente indiferente à ruidosa nuvem de aves que revolteia por cima da sua cabeça).  

Estorninhos-malhados no Campo dos Mártires da Pátria, Lisboa, em 7 de Janeiro 2022. Foto: Paulo Catry

Em finais do ano de 1960, as quantidades de estorninhos que se juntavam nalgumas zonas da Beira Baixa faziam notícia de jornal. Atraídos por essa publicidade, Agostinho Farinha Isidoro, Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior e António Jesus Pereira, ou seja, a fina flor dos pioneiros da anilhagem em Portugal, deslocaram-se a Penha Garcia (concelho de Idanha-a-Nova) com o objetivo de os estudar. Nesses dias, uma viagem do Porto a Penha Garcia era certamente já uma considerável expedição, por estradas estreitas e tortas, de pavimento irregular. 

Ao anoitecer, frente ao dormitório, os ornitólogos estimaram que o bando, que produzia “um ruído semelhante a uma grande queda de água”, contava cerca de cem mil estorninhos. Destes, conseguiram capturar 1500, graças aos irmãos Pires, caçadores locais que os apanhavam com redes especiais. 

Estorninho-malhado. Foto: Charles J. Sharp/WikiCommons   

As aves foram anilhadas e libertadas, sendo que nos 3 anos seguintes houve notícia de 48 recapturas no estrangeiro (a maioria de inverno, em Espanha), incluindo uma na Ucrânia e outra na Rússia (próximo de Moscovo), a uma distância máxima de 3660 km do local de anilhagem*. Alguns foram encontrados na época de reprodução na Alemanha ou na Bélgica, mas é provável que grande parte dos estorninhos-malhados que nos chega seja mesmo originário da distante Europa de leste.

Lembrando-me do Agostinho Isidoro e dos seus colegas, no inverno do ano passado procurei com algum tempo e cuidado estorninhos-malhados Sturnus vulgaris junto a Penha Garcia e na faixa raiana daí para sul. Vi muitos pequenos grupos e bandos de estorninhos-pretos S. unicolor, mas estorninhos-malhados, nem um! (na verdade vi uma escassa meia-dúzia, não muito longe, mas já em Espanha). Que enorme contraste, de 1960 para cá. Neste mais de meio-século podem ter-se dado mudanças de habitat, se bem que ainda abundam os olivais, tão do gosto destes comedores de azeitonas! Também há muitos migradores europeus que, com as mudanças climáticas e outros fatores complementares, já chegam a Portugal em números mais mitigados. Na verdade, embora sem ter estudado a questão, nos anos mais recentes tenho notado que os estorninhos-malhados se fazem escassos em Lisboa.

Estorninhos-malhados no Campo dos Mártires da Pátria, Lisboa, em 7 de Janeiro 2022. Foto: Paulo Catry

Este ano parecia mais um ano destes, dos tempos recentes, mas um pouco antes do natal tornou-se evidente que, ao anoitecer, andavam muitos estorninhos no ar. Um pouco de atenção à direção dos movimentos, bem claros à hora certa, e não é difícil perceber onde se localizam os dormitórios. 

Vale a pena ir ver, os bandos compactos que se contorcem, espremem, ondulam, rodopiam, numa barulheira fantástica. Acrobacias loucas a alta velocidade, que acabam numa nuvem a desfazer-se em aguaceiros de pássaros ziguezagueantes em direção às copas altas das árvores. 

Talvez ande frio pela Europa. Seja qual for a razão, por estes dias, no Campo dos Mártires da Pátria há grande espetáculo ao ar livre para quem quiser. Começa à hora certa, cinco e meia em ponto, e não dura mais do que quinze minutos. Não se atrasem!

* Isidoro AF 1978-79. Cyanopica II (1). 


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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