A carriça (Troglodytes troglodytes) está entre as aves mais pequenas de Portugal e é uma das mais fascinantes. O biólogo Paulo Catry conta-lhe por que é tão grandioso o mundo desta pequena ave e como a encontrou num local improvável.
Abril 2024
Em miúdo, nunca tinha ouvido falar em observação de aves ou em atividades similares. Conhecia uma microbiologista que habitava um laboratório, mas de resto as ciências biológicas eram um mistério. Como não sabia o que fazer ao fascínio que tinha pelo campo, pelo mar e pelos bichos, sonhava em ser caçador ou pescador.
Só aos 16 anos descobri, numa livraria da Baixa, um guia de aves que imediatamente comprei (que sorte ter tido dinheiro do Natal no bolso). “Aves Terrestres”, Círculo de Leitores, tradução de um texto alemão, revisto, de forma incipiente, pelo Prof Fernando Frade*, era o primeiro no género por estas bandas. Fez-se luz!
Na manhã seguinte, num intervalo entre aulas (ou ter-me-ei baldado a alguma?), já estava no Parque Eduardo VII, perto da entrada da Estufa Fria, de olhos atentos. Não trazia guia nem binóculos, que por acaso até existiam lá em casa, nessa época não me atrevia a levar bens preciosos para a selva urbana. E, afortunadamente, a primeira ave de todas mostrou-se saliente, poisada num ramo baixo despido, cantando com toda a pujança ao sol de janeiro. Uma bola de penas e energia absolutamente inconfundível. Uma carricinha-euroasiática (Troglodytes troglodytes).
Existem 86 espécies de carriças no mundo, mas poucas são redondas como a nossa e nem todas têm o rabo curto espetado para cima. Uma carricinha-euroasiática em geral não chega aos 10g de peso. Ou seja, um português médio pode equivaler, em massa corporal, bem entendido, a cerca de 6 ou 7 mil carricinhas! Não se trata, apesar de tudo, da nossa ave mais pequena, há aves mais leves ainda, mas graças àquela cauda minúscula, está próxima de ser a nossa espécie mais curta.
As carriças de várias espécies proliferaram e diversificaram-se no continente americano. Há uma enorme variedade, quase todas são um portento do canto, se não na melodia, certamente nos decibéis emitidos. Como é que coisas tão minúsculas conseguem fazer tanto barulho? Imagine-se que pesávamos menos de um milésimo daquilo que somos. Será que nos fazíamos ouvir assim?
Houve uma carriça aventureira que atravessou o estreito de Bering (também nós, os humanos, percorremos aquele caminho, em sentido contrário, mas muito mais tarde). Dizíamos, algumas carriçinhas de um só tipo, entre todas as outras, cruzaram o estreito e vieram fundar uma espécie nova. Deixaram parentes próximos para trás, no Alasca e no Canadá, ainda hoje quase indistinguíveis a olho nu. As pioneiras expandiram-se pelos vastos continentes que tinham livres pela frente: Ásia, Europa, África (África só no Norte, não atravessaram o Sara). Ficou o continente americano para uma centena de espécies de carriças e os três continentes do chamado Velho Mundo para uma só; uma pequenita que se revelou mais afoita, aventureira.
As carricinhas vivem na vegetação densa, silvados por exemplo, emaranhados de ramos baixos de árvores e de arbustos. De vez em quando lá se atrevem na claridade de um espaço mais aberto, mas logo regressam ao aconchego sombrio do seu dédalo vegetal. Habitam florestas, bosques ribeirinhos, matos diversos, jardins, quintais.
Nas Shetland (pequeno arquipélago a norte da Escócia) não há hoje em dia arbustos nem árvores. É tudo uma espécie de tundra nua, mantida rala por ovelhas de raças em desaparição. Um vento danado, frio cinzento até à exaustão. Calam-se os pássaros, acordam nos raros dias de sol. E aí, das entranhas das escarpas vertiginosas de uma ilha como Foula solta-se um canto de carricinha. Será mesmo que ouvi bem? Sim, lá estão elas. Vivem o ano todo nas fendas das rochas por onde se enfia o vento sibilante e persistente, nas cavidades das enormes cascalheiras, em buracos de pedra húmida e gelada, santo Deus, como é que é possível?
Mas não colonizaram somente ilhas remotas e inóspitas.
Há tempos andei a passear nos Himalaias, pela vertente sul do Anapurna, com picos de sete e oito mil metros pendentes sobre a cabeça.
Acima dos quatro mil o ar é tão fino que cada passo é uma luta. Em princípios de abril, espalhadas pelas encostas, há cascatas de estalactites geladas a brilhar na paisagem. À medida que se sobe, os animais e até as plantas vão rareando. Aos cinco mil, o mundo macroscópico torna-se predominantemente mineral. Há grifos-dos-himalaias e quebra-ossos que flutuam nessa etérea fronteira entre a terra viva e um céu de rocha, gelo e eternidade.
Estou agora a 4600m. Aqui e ali, erva rala queimada da neve invernal acabada de derreter. Tudo o resto são penedos e mantos brancos. Não se vê vivalma. Silêncio, só conversas de riachos distantes. O sol brilha a doer, mas não descongela um lago solidificado. Em breve será noite e a temperatura cairá abaixo dos 15 negativos. Para além de Shiva, não mora ninguém por aqui.
Só que, da paisagem petrificada ergue-se uma voz isolada, penetrante. A silhueta muito escura, difícil de descortinar nos esconderijos cavernícolas da alta montanha. Um gnomo de nove gramas redondas, escaldantes, esfuziantes. Poisa por momentos sobre um grande penedo ao sol, celebra com estrondo a sua imensa vitória evolutiva.
Explode-nos na alma a carricinha. Vida improvável que, por ali estar, nos enche também de ganas de ser.
* Fernando Frade (1898-1983) foi um pioneiro em diversas áreas da zoologia portuguesa, mas cujo trabalho publicado em temas ornitológicos se restringiu aos antigos territórios ultramarinos.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.
A SPEA-Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves patrocina a secção “Seja um Naturalista”.