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Crónicas naturais: as outras ilhas desconhecidas

04.08.2022
Foto: Paulo Catry

Imponentes escarpas vermelhas, refúgio de lobos-marinhos, casa de plantas, caracóis, aranhas e aves raríssimas. Assim são as Desertas, gigantes enormes, quase inacessíveis, terra de superlativos. Paulo Catry fala-nos delas, onde esteve em trabalho em Julho.

Desertas, Julho 2022

Nas muralhas destes castelos naturais adivinham-se espíritos da rocha e, até onde chegam as ondas, duendes muito antigos do mar. Fragas altíssimas, por aqui irromperam gigantescos vulcões, a terra lembrando ao oceano que a força está dos dois lados. Parte de Portugal fica no reino de Mordor.

Foto: Paulo Catry

Raul Brandão chamou aos Açores as ilhas desconhecidas, já lá vai o tempo. As nossas ilhas porventura mais desconhecidas erguem-se aos olhos de toda a gente, frente ao aeroporto da Madeira. Enormes, mas Desertas e pouco visitadas (há passeios turísticos que permitem o breve desembarque num único ponto do extenso litoral – mais de 40 km no total). Ilhas avistadas mas misteriosas desde tempos imemoriais.

Toda a gente sabe que o descobrimento luso da Madeira foi assim como que uma impostura. Ainda hoje se atribui muitas vezes a João Gonçalves Zarco e a Tristão Vaz Teixeira (que lideraram a colonização do arquipélago a partir de 1419) uma descoberta de ilhas que já apareciam em mapas anteriores, até com os nomes atuais. Muito antes de Zarco já as Desertas se chamavam Desertas. 

Na verdade, tudo indica que vários navegadores anónimos foram descobrindo e redescobrindo as ilhas deste mar ao longo de um par de milénios, em aventuras fabulosas que teimamos em esquecer por delas não sabermos quase nada. Odisseias protagonizadas por Fenícios, Númidas, Cartagineses, Romanos e mesmo mouros que habitavam a Península Ibérica (há indícios claros de que estes povos chegaram às Canárias e seria difícil fazerem todas estas viagens sem tropeçar no arquipélago da Madeira).

… até os Vikings. Destes não há registo histórico nem artefactos que sirvam de prova. Mas há restos de ossos de murganhos Mus musculus com uns mil anos de idade achados na Madeira; alguém trouxe os murganhos até aqui, que sozinhos eles não navegam longe. Coincidentemente, há mil anos atrás andavam os Vikings a descobrir novos mundos e é muito sugestivo que os murganhos atuais da Madeira tenham afinidades genéticas com os murganhos da Escandinávia e da Alemanha (e não tanto com os de Portugal)*.

Estas ilhas de recortes quase irreais são frequentemente batidas por ventos fortes e encimadas por nuvens orográficas. Foto: Mónica Silva

O impacto da longa influência humana nas Desertas, bem como na generalidade das ilhas da Macaronésia (Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde) é difícil de quantificar. Vai-se descobrindo aos poucos, biologia forense para massacres do passado. Seguramente foi grande o número de espécies extintas e profundas as modificações nos ecossistemas. O Homem e as espécies por ele trazidas (com destaque para murganhos, ratos, gatos, cabras e coelhos) lançaram o caos nos meios insulares. Crime perfeito: a maioria das vítimas é desconhecida por não ter deixado rasto. 

Com alguns restos de ossos encontrados aqui e ali foi possível reconstituir fragmentos de um puzzle que dá conta da anterior existência de seres maravilhosos nas várias ilhas da Macaronésia. Entre eles podem destacar-se diversas espécies extintas de codornizes Coturnix, de frangos-d’água Rallus ou de escrevedeiras Emberiza que tinham perdido a faculdade de voar; e de mochos Otus e verdilhões Chloris com pernas longas, adaptadas à vida no solo**. Várias destas aves desaparecidas existiam na Madeira e no Porto Santo – porventura nas Desertas também, mas não se sabe. O impacto de cabras e coelhos nas plantas (e por extensão nos invertebrados e mesmo nos vertebrados) destas últimas ilhas deve ter sido arrasador como um fogo de verão. 

Lagartixa Teira dugesii nas Desertas. Foto: Paulo Catry

Graças ao trabalho exemplar do Instituto das Florestas e da Conservação da Natureza (IFCN – Madeira), já neste século têm sido erradicadas espécies invasoras muitíssimo nefastas de diversas ilhas e ilhéus do arquipélago madeirense. Hoje em dia duas das três ilhas das Desertas (o Ilhéu Chão e o Bugio) estão livres de mamíferos introduzidos. Na Deserta Grande há ainda combates a travar, desapareceram gatos e coelhos, mas as cabras e os murganhos resistiram à tentativa de os remover.  

Monachus monachus. Foto: N3kt0n/WikiCommons

Apesar das razias provocadas por hordas sucessivas de invasores e colonizadores indesejados, as Desertas são ainda ilhas de tesouro. Albergam várias espécies de plantas e de caracóis terrestres endémicos, por exemplo, assim como uma aranha de grande porte também endémica. São espécies muito raras, algumas das quais em perigo crítico de extinção. As Desertas são um dos principais refúgios mundiais para os lobos-marinhos Monachus monachus. Representam também a principal colónia do Atlântico (ou mesmo do mundo) de almas-negras Bulweria bulweria, e são o único refúgio existente para outra ave marinha, a muito endémica freira-do-bugio Pterodroma deserta. É esta última que nos traz às ilhas nesta ocasião.

Uma freira-do-bugio passa por nós no mar. Sobe, desce, vira, deixa-se enrolar no vento e logo se liberta, acelera sem esforço, viaja tão repousada que praticamente nunca precisa de descansar. Ultrapassa-nos. Em tudo na vida há uma ponderação, “depressa e bem não há quem”, diz-se, o mundo é equilibrado, razoável até. Só o voo das aves do largo parece ignorar os trade-offs da vida real. As freiras e os seus parentes voam depressa e a baixo custo energético pois à boleia do vento não precisam de bater as asas para avançar. Fazem viagens de alimentação que não têm paralelo com nenhum outro ser vivo deste mundo. 

Freira-do-bugio Pterodroma deserta durante trabalhos para colocação de aparelhos de seguimento do voo. Foto: Paulo Catry

Imagine-se que vamos às compras, abastecer a dispensa ou trazer leite e papas para uma criança que fica em casa. Pegamos num carro (pouco vamos a pé) e guiamos três, quatro, talvez uma dúzia de quilómetros para nos abastecermos… Uma freira, depois de um período a incubar o ovo, é substituída pelo companheiro no ninho e vai alimentar-se durante duas a três semanas, para ganhar reservas corporais e voltar ao choco mais tarde. Os nossos estudos no Bugio mostraram que estas “viagens de incubação” cobrem uma distância média de 7900 km (escrevamos por extenso, não fique a impressão de haver um erro tipográfico: média de sete mil e novecentos quilómetros!!!!). O recorde que registámos? Doze mil quilómetros, sempre a acumular energia***. Doze mil quilómetros numa “ida-às-compras” sem pagar combustível! Quase chegam ao Canadá nalgumas destas viagens. Bem justificados são os esforços para as estudar e proteger (recentemente com o projeto Life Pterodromas4future), são mesmo animais do outro mundo.

Gosto do entardecer na Deserta Grande. Ao final do dia é como se os vulcões de há milhões de anos acordassem. A escarpa vermelha sobre a casa da reserva incendeia-se em sangue e veios, filões negros, a rocha derrete-se olhos adentro ainda mais uma vez.

Escarpas da Deserta Grande com o Bugio ao fundo. Foto: Paulo Catry

À última luz acendem-se as cagarras, vociferantes. E toda a noite revolteiam em silêncio almas-negras pequeninas que amansam o vento e os demónios do mar.

* Gabriel SI et al 2015. J Evol Biol 21

** Rando JC & Alcover JA 2021. inDiferente 23

*** Ventura F et al 2020. Proc R Soc B 287


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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